'Minha bisavó foi enterrada viva': tragédia familiar motiva estudante a buscar mudança

Júlia do Prado, estudante de medicina, e a bisavó, Mariana Corrêa do Prado — Foto: Arquivo pessoal

“Minha avó materna, Romilda, é uma pessoa que casualmente solta em uma conversa normal os acontecimentos mais atrozes de sua vida. Foi por ela que soube a história da minha família: minha bisavó foi enterrada viva em estado de catatonia [diminuição da reatividade ao ambiente], meu avô foi negligenciado no tratamento para o alcoolismo e, com um ano, meu tio morreu de sarampo, pela falta de condições de ir ao médico”, conta Júlia do Prado, de 24 anos.

Desde criança, a jovem tinha certeza de que se tornaria médica pela preocupação que sempre demonstrou com a saúde das pessoas e pelo abalo que a história de perdas da família a causou ao longo da vida. Com origem humilde, vinda de Miracema, interior do Rio de Janeiro, hoje, Prado está no último período de Medicina na UniRedentor, unidade de Itaperuna (RJ).

Nas redes, sua história viralizou e chamou atenção, especialmente, pela sequência de acontecimentos trágicos. Em vídeo viral, foram mais de 4 milhões de views e milhares de reações: “Fiquei muito surpresa com a repercussão do meu post e mais ainda com os comentários positivos sobre a minha história”, diz.

Fora das redes e prestes a se formar na faculdade, o desejo da estudante é movido pelo que narrou no vídeo do TikTok. Ela espera ajudar pessoas em situação vulnerável. A Marie Claire, a estudante detalha a história que causou surpresa nas redes e os esforços para usar o diploma a favor da assistência médica de qualidade às populações carentes.

“Quando me formar, penso em seguir a medicina de família e comunidade. Porque ela é totalmente o SUS e o que faz a maior diferença na vida dos pacientes. Acredito que tratar uma pessoa de maneira completa, não só pela doença, é ser médica ‘de verdade’. A medicina é desafiadora, mas quando penso em parar, lembro da minha avó. Ela foi a pessoa que mais sofreu com a falta de assistência, pois teve perdas muito grandes. Lembrar disso me dá forças.”

Família motivou trajetória da médica

A falta de acesso dos familiares ao sistema de saúde é uma questão que sempre causou preocupação a Júlia. Tudo começou com a bisavó, Mariana, que nos anos 50 passava por um tratamento precário de epilepsia e enfrentava o vício em álcool.

“Em uma véspera de Natal, ela bebeu muito. Como profissional da saúde, hoje, acredito que o sinergismo do álcool e do remédio provocou um coma. No dia 25 de dezembro, ela não acordou e foi dada como morta. Hoje temos todo um protocolo para declarar o óbito, mas pessoas leigas não saberiam aferir os sinais vitais dela naquele estado e sem instrumento médico”, relata a jovem.

A descoberta de que Mariana foi enterrada viva veio dias mais tarde. Segundo a estudante de medicina, um médico que fazia serviços pontuais e gratuitos em Miracema foi responsável pelo diagnóstico: “Quando recebeu a notícia, ele se desesperou. Ficou horrorizado e junto com outros homens da família resolveu tirar ela do túmulo, para ver se tinha alguma chance de vida”.

“Ela estava virada de bruços, o caixão estava todo arranhado por dentro e tinha sangue nas unhas dela. Foi assim que eles descobriram que ela tinha sido enterrada viva.”

A bisavó de Júlia, Mariana, foi enterrada viva — Foto: Arquivo pessoal


Anos mais tarde a avó de Júlia sofreu duas perdas. A primeira foi a do filho, Walmer, que tinha apenas um ano e três meses. Na ocasião, o menino teve sarampo, doença viral erradicada no Brasil apenas em 2016 e que voltou a circular pelo país em 2018, por conta da queda na cobertura vacinal. Na época em que o menino morreu, os avós sequer tinham acesso às vacinas ou às consultas médicas.

“Por caridade, um médico aceitou internar meu tio. Minha avó entregou o Walmer no hospital e não pôde nem ficar com ele. Dias depois, entregaram ele morto. Ela só viu ele de novo sem vida.”

Júlia declara que o tio é um exemplo da necessidade do SUS. “Graças a isso e ao desenvolvimento da medicina, hoje todas as crianças podem tomar a vacina e estão protegidas. Pensando nesse caso é inegável que a assistência à saúde modifica completamente a realidade das pessoas.”

Anos depois, o avô da estudante, Walter, também enfrentou o vício em bebidas como a mãe, a bisavó de Júlia. Diferente dela, o homem chegou a receber tratamento em um hospital psiquiátrico, que usava métodos abolidos desde o início do movimento antimanicomial no Brasil, nos anos 80. Negligenciado pela equipe médica, o vício se agravou e ocasionou o óbito.

“Meu avô passou por muitos problemas psicológicos e alcoolismo após a morte da mãe dele, a Mariana. Não sei qual tratamento ele recebeu naquele ‘sanatório’, mas não funcionou, ele bebia mais e mais, até mesmo lá dentro. Ele fazia funções de funcionário em troca de bebidas.”

Avós de Júlia do Prado, Walter e Romilda — Foto: Arquivo pessoal

As histórias recontadas por Romilda, a avó materna de Júlia, nunca saíram da cabeça da estudante e ressoaram quando ela percebeu que muitas pessoas no Brasil ainda morriam sem acesso à saúde de qualidade. “Aos oito anos, uma matéria do Fantástico [TV Globo] sobre a morte de crianças me impressionou ainda mais. Desde lá, eu tive a certeza [de que gostaria de fazer medicina]”, relembra.

Foram horas de estudo para conquistar o diploma, já que seu sonho só se tornaria realidade com muito esforço. “O caminho para ingressar em Medicina foi bem autodidata. Eu passei a minha adolescência toda estudando, porque percebi que a concorrência era absurda”, diz ela.

“O diploma não é só meu”

Assim como a mãe, que só conseguiu se formar anos depois de encerrar o ensino médio, sendo a primeira a ingressar no ensino superior, passar na faculdade de medicina foi um desafio para Júlia. Foi somente através do Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (FIES) que ela conseguiu realizar o sonho.

A estudante avalia que os programas de incentivo são de extrema importância para que jovens como ela, com narrativas de vulnerabilidade social, mudem a realidade através do estudo: “Há uma luta muito grande para que o FIES aumente o teto, porque as faculdades particulares, principalmente em Medicina, aumentam a mensalidade e chega a um ponto que não dá pra pagar. Muitos alunos precisam largar os estudos. É uma luta muito grande”, avalia.

Prestes a se formar e iniciar a residência, ela se mantém firme no desejo de ser parte da mudança às famílias que carecem de atendimento básico: “O primeiro passo para saber como lidar com as coisas é ter o acesso à saúde, isso faz toda a diferença e reduz os riscos. Penso que minha ‘bisa’, meu avô e meu tio teriam mais chances de vida se na época, tivessem esse cuidado com pessoas em situações parecidas”.

A avó de Júlia do Prado, Romilda e o filho, Walmer — Foto: Arquivo pessoal

Ao decorrer da formação, ela participou de diversos projetos sociais onde teve a certeza de que prestaria serviço às comunidades carentes: “Quero muito estar presente em projetos sociais, principalmente os de Miracema. É a minha cidade, de onde eu vim e o lugar em que tudo começou. Quero devolver à comunidade um pouco do que sei”.

“Eu nunca tive a opção de não dar certo como médica, porque atrás de mim existe meus familiares e a comunidade de onde vim. No final das contas, não sou só eu que preciso ‘ganhar’ e o diploma não é só meu, é de toda a história que está por trás de mim.”

Fonte: Marie Claire


Postagem Anterior Próxima Postagem