Como está a Argentina após dois anos sob a experiência libertária de Javier Milei?


Presidente chega ao meio de seu mandato com uma economia transformada após aplicar uma forte política de ajuste fiscal e enfrentará sua maior prova de fogo nas eleições legislativas

Ao vencer as eleições na Argentina em 2023, Javier Milei prometeu reconstruir o país e “o começo de uma nova era”. A receita para isso foi um pesado ajuste fiscal nas contas do governo e uma diminuição do tamanho do Estado argentino. Agora, ele terá nas eleições legislativas no fim desta semana o teste de fogo de sua gestão, que completa dois anos em dezembro.

O Estadão retornou ao país vizinho para medir o impacto da agenda de Milei em diversos setores sociais e econômicos: aposentados, produtores do agronegócio, estudantes e professores de Universidades públicas, turistas, organizações sociais, economistas e cientistas políticos.

Entre eles, há um consenso. O plano de Milei para corrigir anos de uma crise econômica cíclica teve pontos positivos e negativos.

O presidente Javier Milei segura um megafone ao participar de um comício de campanha em Tres de Febrero, na província de Buenos Aires Foto: Rodrigo Abd/AP

É possível dividir a gestão em duas fases. A primeira, na qual ele avisou que aplicaria medidas dolorosas de contenção de gastos e pediu paciência aos argentinos, foi exitosa. A economia ganhou estabilidade, a inflação — o grande fantasma argentino — foi contida e o risco-país melhorou.

Então veio a segunda fase. O aumento do custo de vida afetou duramente as classes baixas e médias, que começaram a perder a paciência com o governo, já que não viam em seu dia a dia o resultado prático dos bons dados econômicos.

Isso passou a ter um custo político para o presidente, que se viu castigado nas eleições legislativas da província de Buenos Aires, onde seu partido perdeu por 14 pontos percentuais para a oposição peronista.

Preços que pararam de subir

Segundo o economista Juan Manuel Telechea, o controle dos preços é o maior feito de Milei à frente da Casa Rosada. Quando o presidente assumiu o cargo, a Argentina tinha, em média, uma inflação de 10% ao mês e quase 200% ao ano. Era o maior índice do mundo, pior inclusive que o da Venezuela.

Para domá-lo, o libertário colocou em jogo todo seu capital eleitoral. Ele havia sido eleito com mais de 11 pontos de vantagem para Sergio Massa, e já no discurso de posse foi honesto: as coisas iam piorar antes de melhorar. Não havia dinheiro. Foi isso que lhe permitiu implementar um plano tão duro.

O país tinha um forte controle cambial que tentava evitar a fuga de dólares. O Banco Central estava com suas reservas em dólares no vermelho na casa dos bilhões, os preços dos alimentos e dos serviços estavam artificialmente contidos e a desvalorização da moeda era feita a conta-gotas.

Argentinos dizem sentir os preços muito mais altos que dois anos atrás, apesar da inflação controlada Foto: Carolina Marins/Estadão

Ao pisar na Casa Rosada, o libertário extinguiu, de uma vez, quase todos esses controles. A moeda argentina foi desvalorizada em quase 55%, os tetos de preços e subsídios foram liberados e os salários foram congelados. A consequência foi brutal: a inflação de janeiro de 2024 aumentou para 25%. A pobreza saltou de 40% para 52%. O consumo despencou e os serviços e a indústria pararam.

Mas, de fato, depois de piorar, a situação melhorou. “Tomando os dados oficiais, vê-se que ao final do primeiro ano de gestão a inflação se reduziu cerca de três vezes”, lembra o economista Juan Manuel Telechea. “Passamos de uma inflação em média de 10% mensal para uma inflação em torno de 3% mensal, com um equilíbrio fiscal e uma atividade econômica que praticamente havia recuperado toda a queda que tinha tido nos primeiros meses de gestão.”

Passados dois anos, a inflação de setembro de 2025 foi de 2,1%; a pobreza saiu dos 52% do início da gestão para 31,6% até dados do primeiro semestre de 2025; pela primeira vez em 15 anos a Argentina terminou com as contas no azul e o risco-país — indicador econômico calculado pela J.P. Morgan que avalia a capacidade do país de honrar suas dívidas — caiu.


Paciência no limite com os ajustes

Até 2023, qualquer movimento político argentino- fosse uma mudança no gabinete do presidente ou resultados eleitorais - provocava uma corrida aos supermercados. Isso porque os preços respondiam quase instantaneamente ao que se passava no poder, e os argentinos corriam para fugir da remarcação e da perda de valor da moeda.

Isso parou a partir de 2024. As corridas deram lugar às buscas pacientes por descontos em panfletos dos mais diferentes supermercados. E as melhores marcas eram preteridas pelas mais baratas.

Mas ter a inflação controlada significa que os preços sobem menos, não que eles tenham caído. Com os salários congelados, o poder de compra do argentino foi perdendo força ao longo dos meses.

Quando esses ganhos foram enfim liberados para reajuste, não foram corrigidos retroativamente. Ou seja, aquele salto de 25% no índice de preços no início de janeiro não foi reposto. Na prática, o argentino tem um orçamento mensal que dura menos hoje do que no começo do mandato de Milei.

O setor público, especialmente as universidades, começou a se ver sufocado sem repasse de verbas. E as províncias viram seus caixas esgotarem.

“Os grandes perdedores foram os empregados do setor público, empregados ligados ao ensino, e também os pesquisadores, setores específicos do emprego privado registrado como foi o caso da indústria pela forte queda do consumo, e a construção, que também foi extremamente afetada pela paralisação da obra pública”, pontua Telechea.

Uma mulher segura um cartaz escrito 'Chega de Milei' em frente ao Congresso argentino Foto: Luis Robayo/AFP

O termômetro das ruas respalda esse sentimento. Em qualquer conversa de fila de caixa em um mercado argentino, a população é unânime: os preços estão muito altos e os salários são insuficientes.

Esse cenário se traduziu em mudanças nas prioridades dos argentinos. Antes as pesquisas apontavam que a inflação era a maior preocupação da população. Hoje esse tema aparece em terceiro ou quarto lugar. A lista é liderada por desemprego e salários.

Com isso, a distância entre as classes sociais da Argentina aumenta. Enquanto as classes mais abastadas se veem beneficiadas com a melhora dos índices do país a ponto de saírem em massa de férias para outros países, os mais pobres e principalmente a classe média-baixa, que geralmente definem as eleições, estão vendo as economias de uma vida evaporarem.

“A pergunta é quanto essa classe média aguenta”, questiona o cientista político da UBA Facundo Cruz. “Vários indicadores econômicos estão mostrando que o que começou sendo inicialmente um gasto das economias para manter a qualidade de vida, passou a ser agora um endividamento para manter a qualidade de vida.”

O resultado é que hoje você tem rendas que ainda estão em níveis muito baixos, que mesmo que a inflação tenha diminuído, as pessoas estão pior do que antes em termos de poder aquisitivo.

Juan Manuel Telechea, economista e autor do livro ‘Inflação! Por que a Argentina não consegue se livrar?’


Incerteza no cenário político

O castigo veio em queda de popularidade e derrota eleitoral. Segundo o Índice de Confiança no Governo, medido pela Universidade Torcuato Di Tella, Milei tem tido quedas consecutivas de confiança desde julho. Em setembro deste ano, a sua popularidade estava 10% menor que no mesmo período do ano passado, o seu menor valor desde o início do governo.

“No último mês começou a mudar o cenário devido a uma situação econômica que é percebida cada vez mais negativamente pela sociedade nas pesquisas, onde o presente não parece positivo e o futuro não parece promissor”, aponta Facundo Cruz, que é diretor do Observatório Pulsar, responsável pela pesquisa de crenças sociais dos argentinos.

Essa negatividade se traduziu na acachapante derrota eleitoral que o governo sofreu nas eleições legislativas da província de Buenos Aires de 7 de setembro.

As reações dos mercados foram imediatas: o dólar voltou a subir, o risco-país aumentou, as reservas em dólares do Banco Central voltaram a secar, o governo está intervindo pontualmente no câmbio - algo que prometeu não fazer - e novamente o governo se vê pressionado a desvalorizar a moeda, o que faria a inflação disparar novamente. O FMI, que até então estava otimista com o futuro, já reduziu as projeções de crescimento do PIB argentino.

Com medo de reproduzir em 26 de outubro o que ocorreu mês passado, Milei está recalculando a rota. Foi pedir socorro ao seu maior aliado no mundo: o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, que concedeu um resgate de US$ 20 bilhões ao país.

As políticas econômicas do governo estão em modo de suspensão, esperando o que vai acontecer nas eleições de meio de mandato. “O próprio governo, ainda que tenha sucesso nas eleições, vai ter que oferecer respostas”, afirma o economista da UBA Fabio Rodriguez.

“Todo o mercado está esperando que vão haver mudanças de novo no programa. Seja uma nova desvalorização, saída da flutuação cambiária, que não tenha teto ao dólar, e o próprio FMI também vai ser mais exigente em relação à acumulação de reservas pelo Banco Central”, completa.

O presidente dos EUA, Donald Trump, e o presidente da Argentina, Javier Milei, na Casa Branca Foto: Mark Schiefelbein/AP


Fonte: Estadão




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