Há várias estratégias terapêuticas para tratar essa doença neurológica crônica, mas algumas estão mais consolidadas do que outras
A enxaqueca não é uma simples dor de cabeça – é uma doença neurológica crônica, que afeta cerca de 15% dos brasileiros e pode comprometer profundamente a qualidade de vida. Então, o primeiro passo para combater o problema é abandonar a crença de que se trata de um incômodo passageiro. “Enxaqueca é doença, e dor de cabeça é sintoma. A pessoa pode ter dor de cabeça por inúmeras causas, como gripe ou trauma, mas a enxaqueca é uma condição crônica, na qual a dor recorrente é só um dos sinais”, diferencia a neurologista Thais Villa, diretora clínica do Headache Center Brasil.

Enxaqueca é uma doença neurológica que requer tratamento Foto: LIGHTFIELD STUDIOS/Adobe Stock
O cérebro de quem sofre de enxaqueca tem um funcionamento neuroquímico mais excitável, característica herdada geneticamente. Essa hipersensibilidade faz com que o órgão reaja de forma exagerada a estímulos cotidianos como barulho, luz intensa, variações climáticas ou privação de sono. “O problema não está somente no ambiente, mas na forma como o cérebro o percebe”, explica Thais.
Estudos já associaram mais de 150 genes à predisposição para o distúrbio, que afeta principalmente mulheres entre 20 e 50 anos, faixa etária em que a Organização Mundial da Saúde (OMS) classifica a enxaqueca como a principal causa de incapacidade.
“Na média, 50% do problema vem da herdabilidade e a outra metade dos casos acontece por influência dos fatores ambientais”, informa o neurologista Mário Peres, presidente da Sociedade Internacional de Cefaleia e coordenador do Grupo Médico Assistencial de Cefaleia do Einstein Hospital Israelita.
O arsenal terapêutico
Existem vários tratamentos para a doença e o foco é “acalmar” o cérebro e restabelecer o equilíbrio dos neurotransmissores que estão deixando a atividade cerebral disfuncional. As estratégias variam de acordo com a gravidade e o perfil do paciente — mas algumas estão mais consolidadas do que outras. Conheça-as a seguir.
- Medicamentos orais
São a forma mais antiga de tratar a enxaqueca e atuam no equilíbrio neuroquímico do cérebro. Entre os mais usados estão: antidepressivos tricíclicos (que modulam neurotransmissores como serotonina e noradrenalina, reduzindo a excitabilidade cerebral); betabloqueadores (controlam a pressão arterial e também têm efeito na estabilização de neurotransmissores) e anticonvulsivantes (regulam a atividade elétrica dos neurônios, prevenindo picos de excitação que provocam a dor).
São de uso diário, geralmente acessíveis e ajudam a prevenir crises. Costumam ter eficácia limitada e provocar efeitos colaterais, como sonolência, ganho de peso ou alterações de humor e, por isso, deixaram de ser a primeira linha de escolha.
- Toxina botulínica
Popularmente conhecida como botox, é uma abordagem terapêutica mais recente, aprovada desde 2011 para o tratamento da enxaqueca crônica. Diferentemente dos analgésicos, ela atua diretamente nos nervos que transmitem a dor. A aplicação ocorre em pontos estratégicos da cabeça, do pescoço e dos ombros, onde se concentram os nervos trigêmeos e seus ramos.
“O botox modula os neurotransmissores excitatórios, reduz a liberação de substâncias que mantêm a dor e estabiliza o sistema nervoso. É um tratamento trimestral, de alta eficácia, com efeito duradouro e com praticamente nenhum efeito colateral”, explica Thais.
- Anticorpos monoclonais
Outro avanço importante no tratamento da enxaqueca e ainda mais recente – vem sendo usado nos últimos cinco anos. Trata-se de uma terapia alvo, voltada para a modulação de substâncias específicas que causam a dor. O foco é bloquear o peptídeo CGRP, liberado em excesso pelo cérebro durante as crises.
Essa medicação, conhecida informalmente como “vacina da enxaqueca”, reduz a inflamação e a hiperexcitação neuronal. É administrada por injeção subcutânea, mensal ou trimestralmente, dependendo do protocolo. Pode ser combinada ao botox para resultados mais consistentes. É uma abordagem moderna, preventiva, e reduz crises mesmo em pacientes refratários aos tratamentos convencionais. A limitação é o custo elevado e a necessidade de manutenção por longo prazo até que o quadro se estabilize.
“A chegada dos anticorpos monoclonais certamente foi um divisor de águas. É um tratamento bastante efetivo e que tem feito enorme diferença na vida das pessoas com enxaqueca. Hoje, é o melhor perfil de tratamento, pois é muito efetivo e sem efeitos colaterais”, comenta Peres.
- Capacete de luz
A mais recente promessa no tratamento da enxaqueca vem da tecnologia nacional. A Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) aprovou recentemente o HeadUp, um dispositivo médico desenvolvido pela Santos Tecnologia, que aplica fotobiomodulação transcraniana no controle da enxaqueca. A técnica usa luz infravermelha para modular a atividade cerebral.
O equipamento foi testado em 55 pacientes no Hospital Municipal Mendo Sampaio (PE), sob coordenação da neurologista Idele Guimarães. Metade deles recebeu a emissão de luz e a outra metade usou o capacete, sem efeito da luz. Eles passaram por dez sessões de 20 minutos, três vezes por semana. Os resultados mostraram redução significativa na frequência e intensidade das crises entre quem utilizou a tecnologia. “O capacete atua em regiões cerebrais específicas, reduzindo a cascata inflamatória que causa a dor e diminuindo a necessidade de uso de vários medicamentos”, diz a médica.
O neurologista Peres vê a novidade com otimismo, mas faz ressalvas. “A laserterapia é usada há anos no tratamento de dores crônicas e há plausibilidade biológica para a enxaqueca. Mas o estudo ainda é pequeno e não foi publicado em revistas científicas. É cedo para afirmar eficácia”, pondera.
Reconhecimento como doença
Embora existam tratamentos eficazes e acessíveis, o maior obstáculo ainda é o reconhecimento da enxaqueca como doença crônica. Muitos pacientes passam anos mascarando os sintomas sem procurar ajuda especializada. “É uma condição que precisa ser tratada de forma contínua, com ajustes de estilo de vida e acompanhamento médico. O cérebro do paciente com enxaqueca precisa ser compreendido e cuidado, e não apenas silenciado com analgésicos”, aponta a neurologista Thais.
Tudo começa, claro, a partir do diagnóstico correto. Não existe nenhum exame laboratorial ou de imagem capaz de confirmar o quadro – isso é feito de forma inteiramente clínica e depende da escuta atenta e da experiência do especialista. “A ressonância é necessária quando existem fatores de suspeita de outras doenças em que a cefaleia pode ser um sinal de alerta. Mas, quando não há suspeitas de outros problemas, não é obrigatória a realização dos exames de imagem”, explica Peres.
Segundo o médico, para identificar a enxaqueca é preciso considerar critérios específicos, como o número de crises ao longo da vida, a duração dos episódios (geralmente de quatro a 72 horas se não tratados) e a caracterização da dor. É necessário apresentar ao menos dois dos seguintes aspectos: dor latejante, unilateral, de intensidade moderada a forte e que piora com esforço físico. Além disso, os episódios costumam vir acompanhados de náusea, vômito e sensibilidade à luz e ao som. As crises não podem ser consequência de outra doença que justifique a cefaleia.
“A enxaqueca é uma doença invisível. Como não aparece em exames de sangue ou de imagem, o diagnóstico depende exclusivamente da interpretação clínica do médico”, reforça Peres. “E esse é outro desafio: a formação médica ainda carece de treinamento adequado para que os profissionais reconheçam a doença e saibam tratá-la corretamente”, destaca o neurologista, acrescentando que, em média, menos de 20% das pessoas diagnosticadas fazem o tratamento preventivo, que é o que realmente evita as crises de dor.
E, enquanto não chegam ao especialista, muitos recorrem ao uso indiscriminado de analgésicos e anti-inflamatórios, que podem piorar o quadro. “Esses medicamentos dão alívio momentâneo, mas podem provocar o efeito rebote. A dor volta cada vez mais intensa, e a doença cronifica”, finaliza Thais.
Fonte: Estadão

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