Movimento é memória: como o exercício ajuda a proteger o cérebro do Alzheimer


Pesquisador brasileiro que é referência nos estudos de neurociência do exercício conta o que a ciência já sabe sobre os efeitos da atividade física na massa cinzenta

A humanidade conquistou avanços enormes na ciência nos dois últimos séculos. Tais avanços passaram a ter impactos claros na medicina a partir do início do século 20, levando a práticas médicas mais sólidas, baseadas em evidências, e a tratamentos e medidas preventivas cada vez melhores e mais eficazes. Não à toa, a longevidade da população mundial tem aumentado sistematicamente desde a metade do século passado. Para ter ideia, a expectativa de vida no Brasil quase dobrou de 1940 para cá: se antes era de 45 anos, hoje é de pouco mais de 75 anos.

Em boa medida, esse aumento está sendo impulsionado pela redução da mortalidade infantil, decorrente principalmente de melhores condições de saneamento, do sucesso nos programas de vacinação e do aumento do acesso a serviços de saúde, além, é claro, dos avanços da medicina.

Apesar de ser um desfecho positivo e muito desejado, o envelhecimento tem um impacto importante na sociedade, tanto do ponto de vista econômico (que aqui deixarei de lado) como do ponto de vista de saúde. Neste quesito, um dos efeitos mais notáveis é a mudança nas doenças mais incidentes na população. Se antigamente as doenças que mais nos afligiam eram de natureza infecciosa, hoje temos de lidar com a alta prevalência das chamadas doenças crônicas não-transmissíveis, dentre as quais destaco as cardiometabólicas e as neurodegenerativas.

O exercício físico, conforme já extensivamente discutido neste espaço, é uma das intervenções mais eficazes na prevenção e no tratamento de diversas dessas condições. Embora saibamos muito sobre como o treinamento ajuda na saúde das nossas artérias, do coração e do metabolismo, uma área ainda pouco explorada pela ciência do exercício, porém bastante relevante, começa a surgir: como o treinamento pode prevenir ou até mesmo contribuir para o tratamento de doenças neurodegenerativas?

Para esclarecer alguns dos pontos mais importantes desse assunto ao leitor, conversei com o premiado neurocientista brasileiro Mychael Lourenço, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e um dos maiores pesquisadores do mundo na área de neurociência do exercício.

Exercício é fator protetor contra doenças neurodegenerativas - Foto: MclittleStock/Adobe Stock


As doenças neurodegenerativas e a atividade física

Segundo Lourenço, doenças neurodegenerativas compõem um conjunto de condições em que há perda progressiva de neurônios e conexões neurais, o que leva a um declínio gradual de funções como memória, linguagem, movimento e autonomia. Por serem doenças típicas do envelhecimento, elas têm se tornado mais frequentes nas últimas décadas. As doenças que causam demência, somadas, afetam hoje mais de 50 milhões de pessoas no mundo, e já estão entre as principais causas de incapacidade em idosos. Somente a doença de Alzheimer responde por cerca de 60% a 70% dos casos.

Segundo Lourenço, esse quadro se desenvolve como consequência da perda da capacidade que as células do nosso cérebro têm de limpar duas proteínas específicas produzidas naturalmente pelo órgão: a beta-amiloide e a tau. Quando isso ocorre, ambas as proteínas se acumulam e passam a prejudicar o funcionamento dos neurônios e de outros tipos celulares que compõem o cérebro, culminando em perda de capacidade funcional.

Tipicamente, a doença começa a se manifestar com o comprometimento da habilidade de formar novas memórias, resultando em episódios de esquecimento. A doença pode evoluir e comprometer outras funções cognitivas, levando à perda de autonomia para realizar atividades do dia a dia e a alterações neuropsiquiátricas, tais como apatia, depressão, irritabilidade aumentada e agitação.

Raramente há uma única causa capaz de explicar o surgimento do Alzheimer, conforme afirma Lourenço. Trata-se, portanto, de uma doença multifatorial. O fator de risco mais importante é a idade, mas há outros, como características genéticas, diabetes do tipo 2, baixa escolaridade, perda auditiva e sedentarismo. Sim, sedentarismo, o que já indica que a atividade física pode atuar de alguma forma na patogenia da doença.

Lourenço afirma que já temos evidências bem robustas de que treinar regularmente ao longo da vida reduz o risco de desenvolver demências – sobretudo quando o hábito é aliado a uma boa alimentação e cuidados com a saúde mental. Na presença de Alzheimer, a tendência é de que o exercício retarde o desenvolvimento dos sintomas e as perdas funcionais – mas é importante destacar que treinar não é uma cura para a doença.

Ainda não sabemos completamente como se dão os efeitos protetores da atividade física contra o Alzheimer, mas Lourenço destaca que o exercício induz a produção de moléculas que beneficiam a comunicação entre neurônios, e também a formação de alguns novos neurônios. Essa neurogênese parece ser importante para promover novos aprendizados e retenção de memória. Além disso, o exercício serve como treino de atenção e foco. Alguns estudos também mostraram redução do acúmulo das proteínas tau e beta-amiloide no cérebro em pacientes com Alzheimer, o que ajuda a explicar porque treinar pode ser benéfico na desaceleração da progressão da doença.

Lourenço tem pessoalmente investigado, junto com seu grupo de pesquisa, a relação entre exercício e Alzheimer. Uma das mais importantes descobertas de seu grupo foi descrever que uma molécula chamada irisina, que é produzida pelos músculos e pelo cérebro durante o exercício, está reduzida no cérebro de pacientes com Alzheimer. Eles também revelaram que o exercício aumenta a produção dessa molécula, o que ajuda a preservar sinapses (as conexões entre neurônios) e a memória, mostrando que o exercício não é benéfico apenas de forma genérica para o paciente com o Alzheimer, mas também que ele atua diretamente em mecanismos específicos da doença.

Que os promissores resultados das pesquisas do professor Lourenço sejam mais um motivo para sermos mais ativos em 2026. Boas festas!


Fonte: Estadão




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