Revelado: 'Gabinete do Ódio' contra o Governo Casagrande


Uma rede estruturada com servidores de gabinetes de deputados capixabas na Assembleia Legislativa do Espírito Santo e na Câmara dos Deputados tem compartilhado mensagens contra adversários políticos do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), incluindo entre os alvos o governador Renato Casagrande (PSB), secretários de Estado, prefeitos, ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e outros parlamentares.

O núcleo tem organização semelhante ao chamado “gabinete do ódio”, grupo de servidores lotado na Presidência da República e investigado por suposta divulgação de ofensas contra opositores e conteúdos enganosos que favorecem suas convicções.

A reportagem de A Gazeta teve acesso a mensagens trocadas desde o início de março em cinco grupos no WhatsApp criados ou divulgados por assessores do deputado estadual Capitão Assumção (Patriota) e da deputada federal Soraya Manato (PSL). Os próprios parlamentares, além do ex-deputado federal Carlos Manato (sem partido), também são participantes desses grupos. Assumção, assim como os servidores, é um dos administradores dos espaços.

Neles, há disseminação de desinformação, incentivo para que capixabas rompam o isolamento social — principal recomendação para combater o novo coronavírus — e mobilização de seguidores para o linchamento virtual de adversários. Pelo menos quatro servidores e uma estagiária lotados no gabinete de Assumção e um secretário parlamentar de Soraya alimentam e coordenam os grupos no aplicativo.

Modus Operandi
As mensagens nem sempre se referem ao Espírito Santo, mas reiteradamente estão associadas a disputas ideológicas entre a direita e a esquerda. Os grupos são abertos e concentram mensagens de outros seguidores de Bolsonaro, com códigos de área de outros Estados.

Há indícios de que as postagens ocorrem de maneira coordenada. No momento em que os políticos postam conteúdos nas suas redes sociais, por exemplo, os textos, as imagens ou os vídeos são replicados em poucos minutos em todos os cinco grupos analisados pela reportagem.

Ao ser compartilhada em grupos de WhatsApp, uma publicação pode ser disseminada massivamente. O aplicativo permite o repasse de mensagens para até cinco conversas por vez para cada usuário, que podem fazer essa ação diversas vezes, sem impedimento. A prática contribui para que o conteúdo alcance grande número de usuários.

Nos grupos bolsonaristas citados nesta reportagem, há a divulgação de conteúdos que favorecem o presidente, inflamam teorias conspiratórias a respeito da pandemia do novo coronavírus e defendem que o governo capixaba tem maquiado dados e agido para tentar “se beneficiar” da situação de calamidade pública. Mensagens ofensivas a adversários, publicadas até pelos próprios parlamentares, são compartilhadas nesses espaços no WhatsApp.

Na teia dessa rede, há militantes de vários municípios capixabas, que também possuem grupos voltados para exaltação do presidente. Com isso, as mensagens publicadas nos grupos administrados por servidores, ganham capilaridade por apoiadores do interior do Estado. Os deputados negam qualquer tipo de orientação para essa prática.

O conteúdo
No dia 16 de março, por exemplo, o subcoordenador parlamentar Walter Matias — que atua no gabinete de Assumção na Assembleia — publicou uma imagem nesses grupos aos quais A Gazeta teve acesso, que sugere que Casagrande se reuniu com representantes do Partido Comunista da China. Usando um emoji com máscara e setas que apontam para o governador, Matias escreveu “enquanto o pau quebrava no Espírito Santo, olha quem estava na China ao lado da presidenta do PT”.

A imagem utilizada é de novembro de 2017, quando Casagrande, na época presidente da Fundação João Mangabeira, do PSB, esteve em Pequim, a convite do Comitê Central do Partido Chinês. No contexto em que foi publicada, contudo, em meio ao início da pandemia do novo coronavírus, a mensagem sugere uma associação entre o governo chinês — a China foi o primeiro epicentro da doença — , e o governador.

Metodologia inspirada na greve da PM
Walter Matias é ex-policial militar e, assim como Assumção, também foi denunciado pelo Ministério Público do Espírito Santo (MPES) como um dos responsáveis por inflamar os policiais militares ao aquartelamento em grupos de Whatsapp e redes sociais em 2017. A remuneração do subcoordenador do gabinete do deputado é de R$ 7.467,34, conforme o Portal da Transparência da Assembleia.

De acordo com depoimentos tomados pelo MPES com esposas de policiais que participaram dos atos naquele ano, Walter Matias foi apontado como alguém que “difundia mensagens e áudios nos grupos, inclusive com mensagens ofensivas às mulheres que estavam tentando acabar com o movimento e tentando acordo com o governo”. Na época, ele já havia deixado a Polícia Militar, onde atuou entre 2007 e 2016, para criar a Associação de Benefícios aos Policiais e Bombeiros do Espírito Santo (Aspobom), que segundo o MPES, deu apoio logístico às famílias de aquartelados.

Sobre a greve de 2017, Matias e Assumção foram condenados em setembro de 2019 por atentar contra a segurança pública, incitar publicamente a prática de crimes e associação criminosa. As defesas dos acusados ainda recorrem da decisão em primeira instância. Como os fatos denunciados pelo MPES foram praticados quando Assumção não era deputado, ele foi julgado sem prerrogativa de foro.

Desinformação
Os servidores usam, por diversas vezes, manchetes de jornais locais para distorcer informações e difundir conteúdos enganosos nesses grupos. No último dia 10 de junho, por exemplo, a Polícia Federal deflagrou a Operação Para Bellum, para apurar compras irregulares de respiradores no Pará. A PF cumpriu mandados de busca e apreensão em vários Estados além do Pará, incluindo o Espírito Santo. Por aqui, o alvo dos policiais foi o endereço de uma filial de uma das empresas investigadas no esquema. No entanto, servidores fizeram montagens para sugerir que Casagrande era um dos alvos da operação, o que não é verdade.

“Centroavante em um nível de desespero! #PFTocToc”, escreveu o supervisor-geral do gabinete de Assumção, Leonattas Carnevalle, no dia da operação, nos grupos aos quais a reportagem teve acesso. Centroavante era o codinome atribuído a Renato Casagrande nas planilhas da Odebrecht, de acordo com ex-dirigentes da empresa em delações premiadas na Operação Lava Jato. O governador não é acusado formalmente por nenhum crime em decorrência desses acordos. Leonattas é um dos mais ativos nos grupos ao compartilhar conteúdos. O salário dele na Assembleia Legislativa é de R$ 10.034,24.

No dia 13 de maio, o governo estadual determinou que os ônibus passassem a circular sem cobradores e que os veículos funcionariam apenas por bilhete eletrônico, sem dinheiro vivo, para evitar a contaminação pelo coronavírus. A medida gerou temor na categoria, com receio de demissões. Casagrande garantiu que não haveria cortes de funcionários, mas que parte deles seria afastada, com redução salarial, como prevê uma medida provisória do governo federal.

A adjunta de gabinete Cristina Mota, também assessora de Assumção, publicou nos grupos citados e em páginas no Facebook que “Casagrande arquiteta demissão em massa” e que queria “mandar 3.500 para a rua”. A mensagem foi compartilhada com um vídeo de Assumção, em que o parlamentar critica o governo estadual pela medida. “Bora compartilhar até esse vídeo chegar ao Bolsonaro”, diz a mensagem de Mota. O salário da servidora é de R$ 1.419,56.

Outra servidora com atuação intensa na rede bolsonarista no Espírito Santo é a estagiária Elaine Alves da Silva, também do gabinete de Assumção. Após uma live da Orquestra Camerata do Sesi no Palácio Anchieta, em que houve aglomeração de mais de 20 pessoas, ela acusou o governador de promover uma festa no local, enquanto “promove toque de recolher” no Estado. Ainda estimulou ataque à sede do governo em Vitória.

“Eles podem fazer festinhas, o distanciamento social só serve para você. #fogonopalacio”, escreveu no perfil dela no Facebook. Em seguida, ela publicou “ninguém tem coragem de dizer, mas eu tenho: #fogonopalácio de portas fechadas”. O salário da estagiária no gabinete do deputado é de R$ 979,21.

Assumção nega que coordene servidores de seu gabinete para publicações para atacar adversários e afirma que cada um é responsável pelo que publica. O parlamentar foi demandado pela reportagem para responder em nome dele e dos assessores citados. Segundo o deputado, a única regra imposta aos servidores quanto às redes sociais é que não comentem nada sobre outros deputados estaduais.

Contudo, no dia 3 de junho, o supervisor-geral de gabinete do deputado fez ofensas ao deputado estadual Hércules Silveira (MDB), que é autor da lei que impõe multa para quem compartilhar informações falsas durante a pandemia, nos grupos de WhatsApp. A publicação, segundo o próprio Assumção, vai de encontro a sua “política pessoal”.

“Tenho mais de 300 grupos no meu WhatsApp, não oriento ninguém. Só determino que não comentem nada sobre deputados. Nenhum deles faria isso. É a cartilha básica para trabalhar comigo. Não criticar nenhum deputado. Quem lhe passou fez uma montagem grosseira”, acusou. A Gazeta, no entanto, tem a postagem do servidor compartilhada em três grupos no aplicativo de mensagens.

Gabinete de Soraya infla publicações de Manato
No gabinete da deputada federal Soraya Manato na Câmara, ao menos um dos servidores tem atuado nos grupos bolsonaristas analisados pela reportagem no compartilhamento de conteúdos. A própria deputada, Carlos Manato e outros servidores do mandato dela também estão entre os membros dos grupos.

O secretário parlamentar Otávio Messias, com salário de R$ 2.238,29, é apontado como um dos fundadores do Movimento Direita Espírito Santo, grupo conservador criado no Estado. No entanto, ele se afastou do movimento após outras lideranças romperem com Manato, quando ele presidia o PSL estadual.

Entre as mensagens publicadas por ele nos grupos analisados pela reportagem, há ataques ao secretário estadual de Saúde, Nésio Fernandes, que tem feito críticas à forma como o presidente Jair Bolsonaro se posiciona sobre a pandemia. Otávio associa as críticas à filiação do secretário ao PCdoB e ao fato de ele ter estudado medicina em Cuba. “Ele foi candidato a deputado estadual pelo PCdoB em Tocantins obtendo votação vergonhosa, ainda é fã do presidiário Lula”, escreveu em um dos vários posts contra Nésio.

A maioria das mensagens de Otávio são compartilhamentos de publicações do ex-deputado federal Carlos Manato (sem partido), que é marido de Soraya. Candidato a governador em 2018, Manato ficou em segundo lugar na disputa. Foi ainda secretário especial para a Câmara dos Deputados, cargo abrigado na Casa Civil do governo Bolsonaro, em 2019.

Otávio usa figurinhas no WhatsApp com montagens de Casagrande, afirmando que ele será o responsável pelo fechamento de empresas no Espírito Santo, e de Manato com a frase “Eu avisei que votar no PSB era como votar no PT”.

O servidor faz a distribuição dos conteúdos nos grupos de forma quase simultânea com as publicações nos perfis oficiais do ex-deputado. No último dia 19, por exemplo, Manato criticou Casagrande em sua página no Facebook por ter apoiado uma resolução do PSB em defesa do impeachment de Bolsonaro. A postagem foi publicada às 10h41. Nove minutos depois, às 10h52, a mensagem foi compartilhada por Otávio nos grupos de Whatsapp bolsonaristas citados pela reportagem.

Soraya afirma que Otávio é um dos responsáveis pelas redes sociais dela, mas que não tem nenhuma influência sobre o que ele e seus servidores publicam em páginas que eles participam. “Em nenhum momento os oriento para disseminar discursos de ódio”, disse a deputada para a reportagem. A assessoria da parlamentar foi demandada pela reportagem para responder em nome dela e do assessor.

Manato reconheceu que, entre seus seguidores, alguns fazem ofensas a adversários. Embora, informou o ex-deputado, os oriente a não alimentar discursos de ódio. “Não tem gabinete de ódio aqui não. Às vezes acham que temos um exército de pessoas, mas eu não tenho partido, não tenho mandato. Tomo cuidado com o que eu escrevo, ‘printo’ notícias e escrevo alguma coisa que eu acredito em cima. Não sou responsável pelo que outros escrevem”, justificou.

Câmara dos deputados paga site de direita no ES
Entre os gastos que deputados federais podem fazer com o uso da cota parlamentar, financiada com recurso público, é a compra de espaço em veículos de comunicação. Na bancada capixaba, a deputada Soraya Manato é uma das que mais gasta com esse tipo de despesa. Nos últimos 12 meses, foram pagos R$ 5.500 para o Opinião ES, um dos sites com mais conteúdos compartilhados nos grupos administrados por servidores de políticos aliados a Bolsonaro no Estado.

Todo mês, a Câmara dos Deputados deposita R$ 500 para Alan Fardin Simonato, dono do site, de acordo com o Portal de Transparência do Legislativo. Ele é servidor comissionado da Câmara Municipal de Vargem Alta, onde atua como controlador, com salário de R$ 3.426,00. A Casa é presidida no município pelo vereador Luciano Quintino (PL). Ligado a movimentos de direita no Sul do Estado, Alan é apontado como integrante do grupo político de Manato na região.

Entre as matérias do site de Alan compartilhadas nos grupos bolsonaristas analisados por A Gazeta, está a que aponta Manato como o responsável por “convencer” Casagrande a distribuir cloroquina nos municípios. A Secretaria de Saúde esclareceu que o remédio nunca foi proibido, mas que não recomenda o uso, apesar de repassar aos municípios que o solicitarem.

A suposta “liberação” atribuída ao governo do Estado se deve a uma nota técnica enviada no dia 19 de junho aos municípios para que, se decidirem usar o remédio, informem à Secretaria de Saúde, que repassará o medicamento. “Após sugestão de Manato, governo do ES distribuirá cloroquina aos municípios”, diz, enganosamente, a mensagem.

No episódio em que deputados estaduais fizeram uma visita surpresa ao Hospital Dório Silva, na Serra, no último dia 12, o site acusou o secretário de Saúde, Nésio Fernandes, de “criar narrativa ideológica” para se defender da fiscalização dos parlamentares. Na época, Nésio chamou a visita de invasão e a associou a uma declaração do presidente Jair Bolsonaro para que seus seguidores fossem até hospitais e filmassem leitos vazios.

Segundo Alan, não há qualquer tipo de orientação por parte de Manato ou Soraya sobre o conteúdo publicado no site dele. O recurso mensal que recebe é para a publicação de informações relacionadas ao mandato da deputada, afirmou.

“Somos muito transparentes em relação a isso, recebemos como outros veículos também recebem para esse tipo de serviço. O meu site tem conteúdo conservador. Eu, pessoalmente, sou contrário ao governo Casagrande, mas não há nenhuma orientação editorial que eu receba de fora. Os artigos que escrevi foram análises que eu mesmo fiz.”

Outros dois sites também receberam recursos da Câmara, por indicação de Soraya Manato, um valor de R$ 15.970 nos últimos 12 meses. Os portais compartilharam textos institucionais (releases) relacionados ao mandato da parlamentar, o que não é proibido. A reportagem não identificou conexão, contudo, com os grupos políticos associados à rede bolsonarista.

Gabinete do ódio em Brasília é investigado pelo STF
O chamado “gabinete do ódio”, formado por servidores lotados na Presidência da República que atuam em suposto esquema para disseminar conteúdo falso e ofensas a autoridades nas redes sociais, é investigado no inquérito das fake news, instaurado pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

Para o ministro da Suprema Corte Alexandre de Moraes, há indícios de existência de uma associação criminosa dedicada para a movimentar esses grupos, que promovem discursos antidemocráticos e afetam a independência entre os Poderes. No último dia 18, o Supremo decidiu, por 10 votos a 1, a prosseguir com a investigação.

Fonte: A Gazeta



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