Em 2011, o Supremo Tribunal Federal determinou que a união homoafetiva é um núcleo familiar como qualquer outro, logo não deveria haver impedimentos para homossexuais adotarem
"Faz
cinco dias que descobri que não sou mãe dos meus filhos na Receita
Federal", disse a escritora Marcela Tiboni, 38, mãe dos gêmeos Bernardo e
Iolanda.
Sua
publicação em uma rede social jogou luz sobre um problema que afeta casais
homoafetivos: o formulário para criar um CPF para filhos menores de idade ainda
é dividido nos campos "mãe" e "pai".
Além
da violência psicológica contra formações familiares diversas, esse aspecto
traz implicações práticas, como a dificuldade em obter benefícios
governamentais, entre eles o auxílio emergencial.
Marcela
percebeu a falha ao consultar o número do documento dos filhos de dois anos no
sistema da Receita, que pedia nome da criança e data de nascimento mais CPF e
nome da mãe. Ela se colocava no campo da filiação materna, e a busca voltava
vazia.
Na
certidão de nascimento física, lá estão ela e Melanie Graille, 31, como mães da
duplinha. Mas, no banco de dados do governo, nada. "E agora me digam, num
mundo cada vez mais digital, o que vai valer mais, papel ou digital? Para o
Estado sou ou não mãe dos meus filhos?"
Para
Marcela, a dor de cabeça começou ainda no hospital. "Passou um rapaz para
fazer a declaração de nascido vivo. Ali nos perguntou quem era a mãe, dissemos
que as duas, e ele respondeu que só tinha campo de pai e mãe, que era o
documento padrão."
Tudo
certo na certidão de nascimento, com o nome de Marcela e Melanie. Quando foram
tirar o RG dos gêmeos, meses depois, de novo se depararam com a ausência de
espaços para a dupla maternidade. A gambiarra no Poupatempo foi escrever o nome
das duas mães na mesmo lacuna, um seguido do outro.
Para
um dos gêmeos, o nome de Marcela vem primeiro, no outro, é o de Melanie.
O
relato da autora resgatou um problema antigo. Cinco anos atrás, o Ministério
Público Federal do Rio de Janeiro recomendou à Receita uma alteração na ficha
para criar o CPF: em vez de "pai" e "mãe", as expressões
"genitor 1" e "genitor 2". Até hoje, a sugestão não foi
acatada.
A
"invisibilidade da mãe lésbica", diz Marcela, foi um baque para ela e
a esposa, que desde o primeiro encontro, há sete anos, falavam em ter filhos.
"Comecei a chorar, a situação deixa a gente muito vulnerável."
Elas
viraram mães em 2017, por meio de fertilização in vitro. Marcela fez indução
para a amamentação quando Melanie estava grávida de sete meses, o que permitiu
às duas a capacidade de nutrir os filhos com seu leite.
O caso
das duas mães não é único. Nem o presidente da Abrafh (Associação Brasileira de
Famílias Homotransafetivas), Saulo Amorim, 38, foi poupado de ser vítima do que
define como "homofobia institucional".
Ele
adotou Teodoro, 4, com seu primeiro namorado e hoje ex-marido. "Ficamos
juntos 15 anos. A gente fugiu completamente do estereótipo, né? Do que
conservadores gostam de tachar como promiscuidade, pessoas sem vínculo."
Quando
foi tirar a nova identidade fiscal da criança, ouviu no posto da Receita
Federal que o CPF de Teodoro teria um vazio na parte reservada à maternidade.
"Todos
os órgãos públicos puxam informações com base na Receita, de passaporte a
antecedentes criminais. Mesmo tendo insistido, simplesmente não consegui, saí
de lá com o campo 'mãe desconhecida' pro meu filho. Agora só mesmo com medida
judicial."
Outros
casais gays que conhece "conseguiram botar o nome", diz Saulo.
"Não há procedimento, o que tem é uma grande zona institucionalizada e
LGBTIfóbica."
Em
2011, o Supremo Tribunal Federal determinou que a união homoafetiva é um núcleo
familiar como qualquer outro, logo não deveria haver impedimentos para
homossexuais adotarem. "E até agora a senhora Receita Federal não se
mobilizou pra fazer nada, continua mantendo pessoas vinculadas à condição de
mãe", afirma o pai de Teodoro e, no futuro, de uma menina que chamará de
Leonor.
Há
nove anos, o ministro Carlos Ayres Britto, hoje aposentado, disse em seu voto:
"Sem nenhuma ginástica mental ou alquimia interpretativa, dá para
compreender que a nossa Magna Carta não emprestou ao substantivo 'família' nenhum
significado ortodoxo ou da própria técnica jurídica. Recolheu-o com o sentido
coloquial praticamente aberto".
"Há
quase uma década, as famílias LGBTI foram resguardadas pelo Judiciário. Já é
possível que nos documentos da criança ou do adolescente, independentemente se
foi reprodução assistida ou adoção, venham o nome de duas mães, ou de dois
pais", diz Bruna Andrade, fundadora da startup Bicha da Justiça.
"Não
é uma discussão só teórica. Nosso CPF é utilizado para uma série de questões no
dia a dia", afima a mestre em direitos humanos. "Para participar de
programas do governo, tirar passaporte, Imposto de Renda. E isso depende da
vinculação ao nome de uma mãe específica."
No
caso do auxílio emergencial, que em muitos lares foi a única fonte de renda
durante a pandemia, algumas mulheres relataram o seguinte: entravam com o
pedido de assistência governamental, só que o sistema cruzava seu RG com o do
filho. Aí se entendia que se tratava de um homem, já que no CPF da criança ela
aparecia como pai.
Questionada,
a Receita Federal disse por meio de nota que "disponibilizou acesso a
todos os dados do CPF para a concessão do auxílio emergencial pelo Ministério
da Cidadania, incluindo dados de filiação independente do sexo".
O
órgão fiscal afirmou ainda ter entrado em contato com a pasta "no intuito
de colaborar para a solução mais rápida dos casos apontados pelo
jornalista".
Com Informações Notícias ao Minuto