TST mantém indenização de R$ 1 milhão a empregada doméstica submetida a trabalho análogo à escravidão


Mulher trabalhou desde os sete anos na casa de uma família sem ter tido oportunidade de estudar, sem salário e sem condições dignas de moradia. No período, ela foi privada de brincar e estudar, ficou trancada e dormiu por anos no chão da área de serviço da casa.

 Solange passava madrugadas fazendo quebra-cabeça — Foto: TV Globo/Reprodução

Os ministros da 6ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho (TST), em Brasília, decidiram, por unanimidade, manter a condenação de R$ 1 milhão em indenização de uma ex-professora e suas duas filhas a uma ex-empregada doméstica que, durante 29 anos, foi submetida a condições de trabalho análogas à escravidão em São Paulo.

Segundo o processo, Solange trabalhou desde os sete anos na casa da família sem ter tido a oportunidade de estudar, sem condições dignas de moradia e sem o recebimento de salários. A história dela foi contada pelo programa Fantástico, da TV Globo, em junho de 2019 (veja vídeo abaixo).

Ela só podia sair de casa para acompanhar a patroa ao supermercado ou a consultas médicas. Fora dessas situações, as portas eram trancafiadas.

Para o relator do processo na corte, ministro Augusto César, as provas nos altos evidenciaram a prática de trabalho infantil e de situação degradante de trabalho.

O ministro considerou que a indenização de R$ 1 milhão “pode servir como paliativo para as privações e o sofrimento que marcarão a vida da trabalhadora, como sequelas que não se sabe se algum dia se resolverão”.

Promessa de melhoria de vida em SP

Na ação, a emprega afirmou que foi levada de Curitiba (PR) para morar na casa da patroa, em São Paulo (SP), sob a falsa promessa de ser integrada à família, que daria a ela a oportunidade de um futuro promissor.

Porém, uma vez em São Paulo, ela foi privada de brincar e de estudar e obrigada a fazer faxina, lavar roupas, preparar as refeições, cuidar dos animais de estimação da família e também servir de babá das filhas do casal.

Anos depois, ela também serviu de cuidadora do casal, trocando fraldas geriátricas, as roupas de cama e ministrando medicação aos idosos.

Nos 29 anos de trabalho, a mulher narrou aos juízes que nunca dispôs de condições dignas de vida e dormia no chão do banheiro dos fundos da residência ou no chão de um dormitório, quando cuidava do esposo da patroa, que tinha Alzheimer.

Solange diz que se sentia uma escrava em casa de família que a adotou — Foto: TV Globo/Reprodução

No processo, a empregada contou que, por seis anos, dormiu no chão da área de serviço da casa, sujeita a água de chuva e ventos durante os dias de tempo ruim. Em 2016, 29 anos depois de ter sido submetida à situação degradante, a vítima conseguiu escapar da casa da família e retomou sua liberdade.

“Dos sete aos 11 anos, a mulher que trabalhou sem nenhum direito, e somente aos 18 anos teve a carteira de trabalho anotada com um salário que não recebia integralmente, pois eram descontados todos os produtos usados por ela e até mesmo o valor de multas por não ter ido votar, sendo que nunca a deixaram exercer esse direito”, informou o processo julgado pelo TST.

Ao votar a favor da indenização, a ministra Kátia Arruda, do TST, afirmou que o caso deixa claro o “ciclo de perpetuação da pobreza”. Segundo a ministra, as pessoas que começam a trabalhar cedo em casas de família permanecem nessa atividade quando adultas porque não têm tempo de desenvolvimento. Elas também sofrem privações físicas e emocionais.

Para Kátia Arruda, o dano não pode ser efetivamente custeado, “porque atinge toda a vida dessa pessoa e, também, a sociedade”. O valor da indenização, de acordo com a ministra, é proporcional, pois repõe, ao menos, dos salários que não foram pagos no período do crime.

Tribunal Superior do Trabalho (TST), em Brasília — Foto: Divulgação

Tramitação do processo na Justiça

A família já havia sido condenada em 1ª Instância pelo juiz da 88ª Vara do Trabalho de São Paulo (SP). A indenização por danos morais havia sido fixada em R$ 150 mil, por entender que não houve adoção, mas admissão de menor em trabalho proibido.

Na época, o juiz havia entendido que, apesar de grave, a situação de Solange não caracterizava trabalho análogo à escravidão. Mas o Tribunal Regional do Trabalho (TRT), no entanto, elevou a condenação para R$ 1 milhão, a ser pago em 254 parcelas mensais (cerca de 21 anos), atualizadas monetariamente.

Para o TRT, a empregada esteve submetida a situações degradantes de trabalho, em condições análogas à escravidão, sem receber salário em espécie, privada de instrução formal, com sua mão de obra utilizada desde os sete anos em serviços notadamente inadequados para menores, além de ter sido privada de sua liberdade.

Recurso da família

A patroa e as filhas apresentaram recurso de revista ao TST, em que argumentavam que o valor da condenação era excessivo e não condizente com a realidade.

Na sessão de julgamento, a defesa sustentou que a empregada “fazia parte da família”, tinha dormitório próprio, carteira assinada e plano de saúde.

Em contraponto, o advogado da empregada sustentou que a tese da defesa era inverídica e que não se poderia presumir que ela pertencia à família, diante da constatação de que dormia no sofá da sala e, durante muitos anos, em colchões no chão. Outro argumento foi o de que a empregada fora privada de educação: enquanto as filhas do casal têm nível superior, a empregada é analfabeta.

No julgamento no TST, o ministro Lelio Bentes Correa lembrou que a situação da empregada paranaense é muito comum no Brasil, onde as famílias, a pretexto de receber crianças e adolescentes em situação vulnerável, acabam as submetendo a situações incompatíveis com os primados da dignidade do ser humano.

“O que se vê é nada mais do que a pura e simples exploração, com gravíssimas consequências sociais”, declarou Correa.

Direito de sonho tolhido

Na avaliação do magistrado, a empregada teve limitada sua cidadania e “tolhido o seu direito de sonhar, de esperar algo para o futuro”.

Lelio Bentes lembrou que o trabalho doméstico é uma das mais perversas formas de trabalho infantil, em razão dos danos psicológicos, da exposição a riscos físicos, do assédio e do risco de acidentes.

“O caso analisado trata justamente de trabalho infantil e análogo a escravidão, o que contraria a Convenção 29 da Organização Internacional do Trabalho (OIT)”, disse o ministro.

Fonte: G1 SP


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