Ovo dividido, suco em pó e carimbo para não repetir: merenda das escolas encolhe

Alunos fazem a fila para a refeição em escola estadual no Rio. Em muitas cidades brasileiras, a merenda oferecida já não é suficiente para matar a fome das crianças Brenno Carvalho/Agência O Globo

Aos 36 anos, Maria Carmen Ruiz está desempregada e é mãe de quatro filhos. Os dois mais novos, de 4 e 8 anos, estão matriculados na rede municipal de Niterói, mas enfrentam uma realidade bem diferente da vivida por seus irmãos mais velhos, há oito anos, nas mesmas escolas. Desde o retorno às aulas presenciais, no início do ano, Carmen notou uma piora na merenda oferecida aos filhos. Ela admite ser difícil ter dinheiro para enviar lanche todo dia para complementar a refeição e se preocupa quando os filhos chegam em casa ainda com fome.

— Eles reclamam que dão leite puro no café da manhã, raramente com uma fruta. Nas refeições, quase nunca tem carne e não pode repetir. Começaram a dar muito atum enlatado. Meu filho que estuda à tarde já ficou sem a oferta de jantar— lamenta Carmen, que lembra do tempo, não tão distante, em que os filhos mais velhos repetiam os pratos:

— Até os pais, quando iam buscar as crianças, eram convidados para comer. Hoje não tem nada disso. Nessa idade eles gastam muita energia e têm fome. Mas aí ficam com dor de cabeça em vez de focar no aprendizado— diz.

O drama vivido pela família de Carmen não é isolado. Fotos de mãos de crianças carimbadas por um professor no Centro Educacional 3, de Planaltina (DF), como forma de controlar e impedir que alunos repetissem a refeição, que circularam pelos veículos de notícias nos último dias, juntaram-se à imagem de um minguado prato servido por uma escola infantil em Belo Horizonte (MG), onde o ovo que representa a proteína é dividido por quatro crianças. Os registros apontam para um problema comum a várias escolas do país: a redução na quantidade e na qualidade da comida da merenda escolar. Nos últimos meses, a oferta de produtos enlatados, de apenas um copo de leite no lanche, além do controle rigoroso na quantidade oferecida por aluno, viraram hábito.

O caso do DF foi parar na Comissão de Direitos Humanos (CDH) do Senado. A denúncia que chegou aos parlamentares narra que os alunos que se negavam a receber a marca de carimbo eram impedidos de receber até o primeiro lanche.

— Demos entrada em uma representação contra o governo e contra o professor, porque foi iniciativa dele. E enviamos ofícios à Secretaria de Educação do DF e ao Ministério Público estadual, porque isso se caracteriza como abuso. Em qualquer escola que você for hoje no país, vai encontrar uma situação dramática. Tem lugar onde a merenda é suco em pó e bolacha— diz o senador Humberto Costa (PT-PE).

Veto ao reajuste

Questões orçamentárias ajudam a explicar os problemas, apontam especialistas e instituições de educação. A maior fonte de recursos que o país tem para financiar as merendas escolares das redes municipais, estaduais e federais é o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), que destina entre R$ 0,32 e R$ 2 por aluno, por dia, a depender da categoria da unidade de ensino. Os valores, porém, não são reajustados há cinco anos, mesmo período em que houve alta da inflação — somente desde o início da pandemia, a inflação dos alimentos ultrapassou os 43%.

Em agosto, o presidente Jair Bolsonaro vetou o reajuste de 34% na verba, que havia sido incluída no orçamento de 2023 pelo Congresso.

— Os recursos do PNAE já eram insuficientes para uma merenda de qualidade. Eles estão defasados há tempos e não dão conta de garantir o que é previsto no Programa, com segurança e soberania alimentar, a partir de produtos orgânicos da agricultura familiar, com alto teor nutricional e garantindo as diversidades culturais — explica a coordenadora geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Andressa Pellanda, que destaca a importância desse programa para o combate à fome.

— Com a inflação e a crise econômica e social, o cenário se agrava. Temos na alimentação escolar a fonte da única alimentação de muitas crianças e adolescentes, das famílias de mais baixa renda, com pais e responsáveis em situação de desemprego e informalidade.

Pellanda explica que, há vários anos, institutos e associações publicam notas técnicas alertando para a necessidade de previsão orçamentária maior para o PNAE. Para ela, o veto da presidência é mais um capítulo do sucateamento da educação e priorização de verba para o fundo eleitoral e o orçamento secreto. A consequência, diz, é de prejuízo para a aprendizagem e formação das crianças.

— Quem aprende com fome?

Dados da última Pesquisa Nacional de Educação Escolar (PeNSE), do IBGE, realizada em 2019, ainda antes da pandemia, mostram que já naquele momento a maioria dos alunos de escolas públicas afirmava que comia a merenda da escola pelo menos uma vez por semana, enquanto 42,9% afirmaram que se alimentam da merenda entre 3 ou mais dias.

Merendeira das redes municipal e estadual do Rio de Janeiro desde 2002, hoje licenciada, Cristina Souza acompanha de perto, como diretora do Sepe-RJ, a situação da alimentação das crianças e adolescentes nas escolas públicas do Rio de Janeiro. Ela diz que a escassez de alimentos é rotina.

— Temos tido problemas de falta de leite ou produtos derivados. A entrega do pão é irregular. A qualidade de verduras e legumes deixa a desejar. Temos um cardápio que já se tornou repetitivo — relata.
Selma Gonçalves é professora da escola Maria Angela Moreira Pinto, em Niterói, que tem turmas do Ensino Fundamental 1. A maior restrição na sua unidade, conta, é na hora do lanche:

— Antigamente tinha sanduíche, biscoitos variados, suco, iogurte, achocolatado. Agora, às vezes é só um copo de leite e um pedaço de fruta. A variedade nos almoços e jantares também está menor. Peixe não tem mais — diz.

Diante da situação, a professora conta que a escola fez reuniões e se organizou internamente de forma a distribuir melhor a comida. Muitas vezes o turno da manhã era privilegiado, na quantidade de comida, em relação ao turno da tarde.

Em Fortaleza, partiu dos próprios alunos a ideia de organizar as reclamações sobre a merenda escolar em uma unidade da rede pública. Após pesquisa interna, os estudantes geraram gráficos com os principais resultados. À pergunta “acha que os alimentos oferecidos possuem uma boa quantidade de nutrientes para o período integral?”, 43% responderam que não, 33% talvez e apenas 24% sim.

O cenário é se complica em municípios menores, onde a verba que chega do governo federal é mais escassa. A cidade Nova Fátima, no sertão baiano, de pouco mais de 8 mil habitantes, tem tido dificuldade para manter a alimentação dos alunos. Na humilde realidade dessas crianças e adolescentes, muitos dependem da comida ofertada no colégio. Na Escola Francisca Mendes Guimarães, no entanto, uma cena também chamou atenção e foi parar nas redes. Foi na semana passada, quando alunos de todos os turnos receberam nada mais que biscoitos e suco em pó.

Presidente do Fórum Nacional de Conselhos de Alimentação Escolar (CAE) e do Conselho Estadual de Alimentação Escolar de São Paulo, Marcelo Colonato defende mudanças de cálculo na distribuição dos recursos do PNAE. Hoje, o dinheiro é pago, por aluno, de forma padronizada em todos o país, ignorando as diferentes realidades financeiras das prefeituras e governos estaduais. Colonato destaca que em SP, por exemplo, a prefeitura usa apenas de 20 a 30% dos recursos do PNAE para pagar a merenda, enquanto a verba representa até 70% do orçamento para alimentação em prefeituras menores.

— O valor per capita por aluno em São Paulo é o mesmo de uma cidade do interior de Amazonas. Precisamos de um modelo melhor para fazer a distribuição mais justa, como o Fundeb — afirma.

O Conselho de Avaliação e Monitoramento de Políticas Públicas (CMAS) fez um estudo sobre a aplicação do PNAE e propôs mudanças na distribuição. O conselho destacou que, até 2030, os municípios da faixa dos 30% mais ricos receberiam 32% dos recursos do programa, contra apenas 23% enviados para as cidades na faixa das 30% mais pobres.

O Ministério da Educação informou que os valores repassados são definidos em resolução do FNDE, “não havendo aporte diferenciado entre os municípios em maior vulnerabilidade social”. Durante a pandemia, a pasta diz que repassou duas parcelas extras, para apoiar municípios e estados com distribuição de kits de alimentos.

Fonte: O Globo


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