Aos 100, violinista famosa do ES tem violino raro de 1710 e até dirige

Vera Silva Camargo: a dama do violino

Depois de alguns dias, consigo um número de telefone fixo dado por um amigo. Ligo. Do outro lado da linha, Jussara - a sobrinha (e única parente direta viva) - atende. Nos apresentamos e, então, marcamos a entrevista. No dia acordado, uma consulta com dermatologista surge na agenda da figura principal e o bate-papo é adiado. Na manhã seguinte, Vera Camargo abre as portas de sua cobertura na Dante Michelini, em Vitória, com exclusividade para a Coluna Pedro Permuy.

Aos 100 anos de idade (recém-feitos, em agosto deste ano), a violinista que é das mais famosas do Espírito Santo tem um currículo, de fato, invejável. Mas a vitalidade é que é de deixar qualquer um com os cabelos em pé: “Não tomo remédio nenhum. Às vezes o médico me receita alguma vitamina só para não dizer que não passou nada, deve ficar sem graça (risos)”.

“Você é inspiração. É exemplo. Tem consciência disso?”, questiona este colunista à centenária, que não aparentaria ter mais que uns 80 e poucos anos, muito bem conservada, com o cabelo penteado e a postura a tope.

“Que exemplo? Não faço mais que minha obrigação”, responde, imprimindo uma naturalidade que só alguém verdadeiramente madura poderia ter.

“E tem mais alguém da família por aqui?”, retruca a coluna, que ouve de Vera: “Quem que vai estar? Eu estou com 100 anos, meu filho, quem é que vai estar vivo? Todos já foram, até os sobrinhos”, fala, mas leve - uma característica que marcou a entrevista inteira.

Para ela, aliás, é a tranquilidade de viver um dos segredos que a faz ostentar essa plenitude toda até depois de um século.

“Sou calma. Só era nervosa para tocar como solista e nas provas (de música). Minha professora me mandava comer uma pera, ela dizia que acalmava. Eu comia a pera, mas continuava nervosa (risos). E dirijo até hoje. A garagem (do meu prédio) é tão horrível que só eu consigo tirar o meu carro. Descendo ou subindo tem uma pilastra de cara, além da parede. Tem que fazer uma manobra em ângulo reto e ir, assim, certinho. Só eu consigo (risos). E nunca bebi. Nas festas, ainda, tomo guaraná”, brinca.

A musicista é uma das fundadoras da Orquestra Sinfônica do Espírito Santo (Oses) e da Faculdade de Música do Espírito Santo (Fames), antes Escola de Música do Espírito Santo (Emes). Foi também ela a agente que fez Música virar curso superior reconhecido pelo Ministério da Educação (MEC) no Estado e, com o marido, Alceu Camargo, de quem é viúva há 21 anos, ocupou uma das primeiras cadeiras de professora da instituição, estruturada mais ou menos da forma como conhecemos hoje durante o governo Élcio Alvares.

“Nós preparávamos uma Cerimônia da Música, como era chamada, com os alunos. Os mais adiantados tocavam, tinha um conjunto de cordas… E a Sônia Cabral era da Fundação Cultural do Espírito Santo (órgão do Executivo capixaba que era espécie de Secretária da Cultura) e Beatriz Abaurre, presidente. E aí elas foram ao doutor Élcio (Alvares) para ver se a gente levava o conjunto para a fundação. Me ligaram do Palácio Anchieta em nome de doutor Élcio, conversamos e viramos orquestra”, lembra.

“Não poderia negar nada a doutor Élcio porque quando os fiscais do Ministério vieram conhecer a então Emes, a escola estava totalmente apta para ter o curso reconhecido como graduação, mas não tinha uma sede oficial. Àquela época, doutor Élcio nos deu o prédio em que estava a então Secretaria de Educação. E nós fomos. Nosso currículo era idêntico ao que era dado na Escola Nacional de Música, no Rio de Janeiro, impecável. Eu mesma fui procurar saber de tudo para organizar. Na ocasião, as irmãs de caridade do (Colégio do) Carmo ofereceram um espaço amplo com várias salas para a Secretaria de Educação e doutor Élcio nos colocou no prédio em que eles ficavam. ‘Uma escolinha de música ocupar a Sedu, imagina. Uma escolinha’, eles falavam. Chamavam a gente de ‘escolinha’. E a gente conseguiu”, narra.

“O doutor Élcio foi o braço direito da música no Espírito Santo. Não fosse por ele, nós não teríamos tido o reconhecimento da Música como ensino superior” - Vera Camargo, violinista.

Por outro lado, esse know how todo foi construído por anos de expertise e (muita!) prática. Vera teve o primeiro contato com um instrumento musical ainda criança. Aos 4 anos de idade - ou seja, 96 atrás. “Na fundação do Orfanato Cristo Rei, o padre havia ganhado um piano novo. E minha irmã mais velha já tocava muito bem. Ela se apresentou. No dia, eu quis tocar também e mamãe não queria deixar, mas o padre permitiu e eu toquei ‘Colar de Pérolas’. Ali, mamãe viu que eu tinha jeito e comecei”, lembra.

Do episódio no evento em diante, parte do dia de Vera era no colo da irmã, já sentada ao piano, reproduzindo o que a mais velha fazia e aprendendo, pouco a pouco, a dominar as oitavas do instrumento. “Lá pelos 10, 11 anos, conheci minha professora de violino, dona Barbieri, uma italiana que morava em Vitória. Como eu já tocava piano, foi só aprender a posição (no violino) e em pouco tempo passei na frente de todo mundo que estava já tendo aulas (risos). Depois, tirei o ginásio aqui no Estado e fui para a graduação no Rio. Estudei com dona Paulina D’Ambrósio, na Escola Nacional de Música, da federal. Fiz um ano de aula particular para adiantar matérias que estavam atrasadas e depois fiz a prova de análise harmônica e passei”, comemora à medida que recorda, com clareza, a linearidade da vida profissional.

Viúva de um casamento de mais de 60 anos e sem filhos, pouco tempo depois ela e o marido, Alceu Camargo (também um dos fundadores e primeiros professores da Fames), eram 1ª violinista e spalla da Orquestra Sinfônica de Minas Gerais, em Belo Horizonte. “Eu já estava casada nessa história toda de Emes e Fames. Alceu foi convidado para spallar (ocupar o cargo mais alto de uma orquestra depois da maestria) e eu, 1ª violinista. Em 1954, para você ter uma ideia, Belo Horizonte já era muito mais avançada que Vitória é hoje. Já tinha o mês da ópera e temporada lírica, que nós estávamos à frente. Eu levada daqui (de Vitória) e Alceu, de Curitiba, de onde ele era. Terminamos esse trabalho (no festival) e nos mudamos para o Espírito Santo”, continua.

Já aqui, foi uma das cinco fundadoras (incluindo o marido) da então Emes, atual Fames. Lá, foi professora até a aposentadoria, aos 60 anos de idade. “Agora não tenho rotina. Na minha idade, a rotina é costurar, ouvir música em um aparelho que ganhei agora, de 100 anos, que não estou sabendo lidar ainda… E cuidar dos meus dois gatinhos. Do violino, quando me aposentei, me aposentei de vez. Não podia mais tocar com a artrose que apareceu”, justifica.

Mas o violino de que Vera fala não é um qualquer que se compra por aí hoje em dia. Aliás, até à época em que ela mesma o adquiriu não era comum ver um deles dando sopa por aí.

“Meu violino é o primeiro desde quando eu tinha 10, 11 anos e comecei as aulas. É datado de 1710. Um Borelli original”, fala toda orgulhosa.

Trata-se de uma das fabricantes mais antigas e mais bem conceituadas do mundo na manufatura do instrumento musical. “Um senhor um dia foi à casa de dona Paulina Barbieri, a italiana que me dava aulas, e apareceu com o violino puro, sem caixa nem nada. Ele era colecionador. Estava construindo uma casa e precisava de dinheiro para terminar a obra. Falei com mamãe, que juntou algumas pessoas da família e comprei o violino. Ainda pedi uma diferença porque ele estava sem caixa, sem estojo, sem nada. Ele me deu (o abatimento) e eu comprei um estojo logo depois de sair toda feliz com ele na mão”, detalha.

Tanto chama a atenção a verdadeira obra de arte que a violinista tem em casa que até a Christie’s, casa de leilão de artigos de luxo de Londres, na Inglaterra, já ofereceu algumas dezenas de milhares de dólares para leiloar o artigo considerado raríssimo. Só para se ter ideia, na internet, o violino da mesma marca mais antigo já leiloado datava de 1717. “Em uma ocasião a Christie’s entrou em contato e ofereceu pagar uma fortuna pelo violino. Eles disseram que os lances seriam de 50 em 50 mil dólares, no mínimo. Mandaram e-mail, não deu meia hora entraram em contato de novo… Mas eu não vendo. Não venderia nunca. Não estou precisando, estou bem. É o tipo de coisa que não se vende, foi meu violino a vida toda”, confidencia.

Antes, Vera só teve um outro instrumento que tinha de beleza o que seu Borelli tem de raridade. “Ele era de madeira marchetada, com a borda mais amarelada e um dragão esculpido por ele todo com a cabeça pelo cabo. Lindo. Mas só isso. O som era horrível (risos)”, lembra, às gargalhadas.

Não diferente que para qualquer outra pessoa, o tempo passa rápido para Vera. E talvez mais rápido para ela, que, além de uma história rica, ainda goza de plena atividade e vitalidade depois de um século de vida. Agora, os planos já são para receber os amigos para assoprar as 101 velinhas.

Fonte: Coluna Pedro Permuy.


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