VÍDEO: câmera corporal registra momento em que PM atira e mata idoso

Unidades de resgate chegaram no local após cerca de 20 minutos do idoso ser baleado. — Foto: Reprodução


Câmeras corporais, obtidas com exclusividade pela TV Globo, registraram o momento em que um policial militar atirou contra dois suspeitos em uma moto e matou o aposentado Clóvis Marcondes de Souza, de 70 anos, que estava a caminho da farmácia. O crime ocorreu no Tatuapé, na Zona Leste de São Paulo, em 7 de maio.

Alguns trechos da gravação das câmeras corporais, inclusive a que registrou o momento do disparo, estão sem áudio (leia mais abaixo).

No total, quatro policiais militares da Força Tática participaram da ocorrência. O sargento Roberto Marcio de Oliveira, que ocupava o banco dianteiro da viatura, foi o responsável pelos disparos. Clóvis foi atingido na cabeça, enquanto passeava na calçada. Ele não tinha nenhuma relação com a ocorrência.

Inicialmente, a Polícia Militar alegou que o tiro foi acidental e por isso não comunicou a Polícia Civil sobre a ocorrência nem registrou o boletim de ocorrência. Entretanto, não é isso o que as imagens das câmeras corporais revelam. Especialista em segurança pública ouvido pelo g1 avalia que a abordagem tem erros procedimentais (leia mais abaixo).

A gravação inicial do episódio mostra todos os agentes no interior da viatura, em perseguição aos dois homens na motocicleta, às 16h10 na Rua Platina. Somente após dois minutos dos disparos, a equipe percebe que o aposentando foi baleado.

Confira a cronologia dos fatos:
  • 16h10 - Sargento saca a arma e atira do interior da viatura em direção aos suspeitos;
  • 16h11 - Policiais descem da viatura e revistam os homens;
  • 16h12 - PMs percebem que o idoso está caído no chão e ferido por disparos de arma de fogo;
  • 16h19 - Primeira equipe do Corpo de Bombeiros chega de moto para socorrer a vítima;
  • 16h22 - Idoso recebe massagem cardíaca;
  • 16h32 - Duas viaturas de resgate do Corpo de Bombeiro chegam no local;
  • 16h34 - Bombeiros param a massagem cardíaca e usam o desfibrilador na vítima;
  • 16h37 - Óbito é constatado e o corpo é coberto por uma manta térmica.

O consultor sênior do Instituto Sou da Paz, Bruno Langeani, avalia que a abordagem tem erros procedimentais. "A viatura tem que ser estacionada atrás da moto e não fechá-la bruscamente. Os policiais desembarcam com arma no coldre e depois a retiram. Não é admitido disparo contra veículo em movimento segundo o próprio protocolo da PM".

Para Langeani, se várias regras de protocolo foram descumpridas durante a abordagem dificilmente o disparo pode ter sido considerado acidental. Dessa forma, houve dolo eventual na ação dos policiais. Isto é, o risco de matar foi assumido ao efetuar o disparo contra um veículo em movimento.

"Na abordagem de fundada suspeita - como é este caso - eles desembarcam, sacam a arma e mantém na posição sul, que é cano apontado para baixo. Se tudo isso tivesse sido seguido, mesmo se houvesse disparo acidental (arma disparando sozinha) não haveria vítimas", explica o consultor sênior do Instituto Sou da Paz.

Socorro

Durante a tentativa de socorro do idoso, os policiais demonstram nervosismo com a demora para a chegada do resgate que o levaria para o pronto-socorro. "O foco aqui é salvar o tiozinho, cadê a por** do resgate para levar ele embora", fala um dos agentes envolvidos na ocorrência.

Pelas imagens das câmeras corporais, também é possível verificar que o helicóptero Águia do Grupamento Aéreo da PM foi acionado, porém não chegou a ser utilizado. Após pelo menos 12 minutos de massagem cardíaca, o óbito do aposentando é constatado no local.

Abordagem

Enquanto os bombeiros tentavam salvar Clóvis, os PMs prosseguiram com a abordagem aos dois homens. Segundo as imagens, eles solicitam alguns dados como nome completo, número da carteira de identidade, nome da mãe e endereço residencial.

Um dos agentes ainda pede para o homem desbloquear o celular e entregá-lo para consulta, enquanto outro PM, identificado como cabo Camilo, se aproxima para questionar o suspeito, de forma incisiva, sobre a direção na moto. Veja o diálogo:

Cabo Camilo: "Estava correndo por quê?"
Suspeito: Não estava correndo, não.
Cabo Camilo: Estava correndo por quê? Quem estava no piloto da moto?
Suspeito: Fui eu.
Cabo Camilo: Estava correndo por quê?
Suspeito: Quando vocês mandaram parar, eu parei.
Cabo Camilo: Me explica o que eu estou te perguntando.
Suspeito: Vocês mandaram eu parar, eu parei.

Em outro momento, o policial ainda indaga várias vezes o homem: "foi você que foi preso?". No fim, os suspeitos não foram presos, pois não cometeram nenhum crime.

Vídeo sem áudio

Atualmente, no estado de São Paulo, as câmeras corporais funcionam de forma ininterrupta, modalidade conhecida como gravação rotineira. O áudio só é captado quando o policial militar aciona o equipamento de forma intencional.

Com o novo edital para aquisição de 12 mil câmeras, lançado na semana passada pelo governo, o equipamento vai deixar de funcionar durante todo o turno. O próprio policial será o responsável por acionar o equipamento no local da ocorrência.

Questionada sobre o motivo dos vídeos estarem sem áudio e o Procedimento Operacional Padrão que os PMs deveriam ter sido seguido, a SSP não respondeu à reportagem.

"A Polícia Militar esclarece que todas as circunstâncias relacionadas aos fatos, inclusive a operação das câmeras corporais, seguem em apuração pela corporação por meio de Inquérito Policial Militar (IPM). O policial permanece detido no presídio militar Romão Gomes. Um inquérito policial também está em andamento pelo Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), com acompanhamento do Ministério Público", informou a pasta em nota.


Justiça comum assume caso

A Justiça Militar acatou o pedido do Ministério Público e se declarou incompetente para analisar o caso da morte do aposentado morto durante abordagem policial. Com isso, o julgamento passará a ser responsabilidade da Justiça comum.

O juiz Ronaldo João Roth considerou que houve dolo eventual na ação do sargento Roberto Marcio de Oliveira, de 49 anos, que fez o disparo que resultou na morte do aposentado.

Roth também citou que houve falhas de procedimentos operacionais e mencionou o “método Giraldi”, que foi criado justamente para diminuir a letalidade, que orienta: “nunca manuseie arma ou munição no interior da viatura”.

O juiz concluiu: “Fica evidente, assim, que a arma somente disparou pelo fato de o investigado ter acionado o gatilho de sua arma, precipita e desastradamente, colocando em risco terceiras pessoas inocentes, diante da abordagem policial, o que tirou a vida da vítima”.

Segundo o presidente da Associação dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo (ADPESP), André Pereira, a ação da Polícia Militar serviu somente para atrasar o julgamento a partir de agora e que toda essa situação poderia ter sido evitada.

Entenda o caso

Clóvis Marcondes de Souza morreu após ser baleado por tiro acidental de PM em SP — Foto: TV Globo/Arquivo Pessoal

Em 20 de maio, a ADPESP havia pedido a instauração de um inquérito para apurar a conduta dos oficiais da PM por terem conduzido as investigações iniciais do homicídio no próprio quartel e não terem registrado o caso na delegacia.

Fugindo do procedimento padrão, o boletim de ocorrência sobre o assassinato do idoso não foi registrado pelos PMs envolvidos na ocorrência na Polícia Civil. O caso foi encaminhado diretamente para a Polícia Judiciária Militar.

O pedido também solicitava a investigação pelos eventuais crimes de falsidade ideológica e prevaricação. Segundo Pereira, o procedimento adotado pelos policiais foi realizado em desacordo com a lei.

“Os familiares da vítima certamente ficaram sem entender o porquê de não estarem em uma delegacia, sendo atendidos por um Delegado de Polícia. O erro fica claro, inclusive, pelo fato desse procedimento lavrado no quartel ter sido considerado irregular, por falta de homologação do auto de prisão em flagrante pela comandante do batalhão, conforme representação do Ministério Público e acatada pelo Juiz Militar, o que resultou no relaxamento da prisão em flagrante”, afirma o presidente.

Uma resolução da própria pasta (SSP-40), publicada em março de 2015, define que casos de morte decorrentes de intervenção policial na capital devem ser obrigatoriamente registrados e investigados pelo Departamento de Homicídio e de Proteção à Pessoa (DHPP).

Em nota, a SSP informou que "todas as circunstâncias relativas ao caso são investigadas pela Justiça Militar e pelo inquérito instaurado pelo DHPP, com acompanhamento do Ministério Público".

"As informações colhidas no local e, posteriormente, com as partes envolvidas, são apuradas pelas instituições. O caso foi registrado na Polícia Judiciária Militar, que decretou a prisão em flagrante do policial por crime culposo. Posteriormente, a prisão foi convertida em preventiva, de modo que ele permanece no Presídio Romão Gomes", diz nota.

A Polícia Civil também investiga o assassinato de Clóvis, após a própria família registrar o boletim de ocorrência em 11 de maio.

Anteriormente, a investigação estava sendo feita somente pela Polícia Militar (PM) sob a alegação da corporação de que o disparo foi "acidental". E que, segundo o Código Penal Militar, pelo fato de ser um homicídio culposo (sem intenção de matar) cometido por um policial militar, ele poderia ser apurado exclusivamente pela Polícia Judiciária Militar.

A Secretaria da Segurança Pública chegou a informar à imprensa que somente homicídios dolosos cometidos por policiais militares são de competência da Justiça comum, sendo investigados pela Polícia Civil.

PM está preso preventivamente

O sargento Roberto Marcio de Oliveira, que fez o disparo que matou Clóvis, foi preso em flagrante e depois teve a prisão preventiva decretada pela Justiça Militar. Ele está detido atualmente no Presídio Militar Romão Gomes, na Zona Norte.

A reportagem não conseguiu localizar a sua defesa para comentar o assunto até a última atualização desta reportagem. O sargento da Força Tática do 8º Batalhão da PM ficou em silêncio por orientação de seus advogados quando foi ouvido pela Polícia Judiciária Militar.

Ferroviário e palmeirense

Clóvis e família palmeirense — Foto: Arquivo pessoal

Clóvis trabalhou no patrimônio da Ferrovia Paulista S/A (Fepasa) por 34 anos. Ele ficava na Estação Júlio Prestes. E ainda trabalhou na Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) por 15 anos. Após 49 anos trabalhando, ele aposentou em dezembro de 2019.

Palmeirense fanático, ele não perdia um jogo. Casado há 45 anos, ajudava a esposa a lavar louça e passar roupa. Gostava muito de ir à feira e de caminhar. Faria 71 anos no próximo dia 27 de maio. Deixou a esposa, dois filhos e dois netos.

Paulo Proença, genro de Clóvis, falou à reportagem que é preciso apurar se, de fato, o disparo foi acidental e se a morte foi sem intenção. "A gente não pode tratar como um acidente como um crime culposo. Se a pessoa sacou uma arma, ela assume o risco", disse.

Fonte: G1


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