Grupo internacional de especialistas em fisiologia e suplementos se debruçou sobre as principais dúvidas a respeito da creatina; veja o que eles descobriram
Recentemente, um grupo internacional de pesquisadores, incluindo cientistas da Universidade de São Paulo (USP), se uniu para cumprir uma missão: esclarecer as principais dúvidas e os mitos sobre a creatina, um dos suplementos mais populares da atualidade. Para isso, eles se debruçaram sobre diversos estudos científicos que abordaram a segurança e os efeitos da substância.
O resultado é a segunda edição de um artigo que traz respostas para 17 dúvidas recorrentes sobre o tema – você conhece as principais abaixo. Alguns spoilers: a creatina não afeta os rins, não causa câncer nem precisa ser ingerida em horário próximo ao do treino.
Vale lembrar que a creatina é uma substância produzida naturalmente pelo organismo a partir dos aminoácidos glicina, arginina e metionina. Ela também pode ser obtida via alimentação, por meio de peixes, lácteos e carnes vermelhas, ou através de suplementos, que oferecem uma dose concentrada.
De acordo com a nutricionista Desire Coelho, em coluna do Estadão, a creatina atua no fornecimento imediato de energia em diferentes tecidos, como músculos e cérebro. Daí porque pode beneficiar quem pratica, por exemplo, musculação.
O artigo
O trabalho foi publicado no periódico Journal of the International Society of Sports Nutrition e contou com a colaboração dos pesquisadores brasileiros Hamilton Roschel e Bruno Gualano, docentes e integrantes do Grupo de Pesquisa em Fisiologia Aplicada e Nutrição da USP.
Ao Estadão, Gualano explicou que o conteúdo abordado no documento pode ser dividido em três tipos: fatos confirmados, informações desmentidas e, por fim, alegações que exigem mais estudos.
Confira os principais tópicos de cada categoria, segundo os cientistas.

Creatina é um dos suplementos esportivos mais populares da atualidade. Segundo pesquisa, de fato a substância oferece benefícios. Foto: TatjanaMeininger/Adobe Stock
Mitos sobre a creatina
- O horário de consumo importa?
Não. A creatina tende a ser armazenada em nosso organismo e o efeito é definido pelo seu estoque em nosso corpo. Portanto, não faz diferença o horário de consumo, apenas a frequência.
No entanto, existe um limite para a quantidade de creatina que o organismo é capaz de absorver e armazenar. “Você não consegue estocá-la indefinidamente”, explica Roschel.
O ponto é que esse limite, assim como o fornecimento de energia durante os exercícios físicos, vai ser atingido independentemente do momento da ingestão.
- Creatina faz urinar mais?
É comum começar a ingerir creatina e perceber um aumento na frequência de idas ao banheiro para fazer xixi. Essa relação já virou tema de pesquisas e as evidências científicas sugerem, até o momento, que a produção mais intensa de urina está mais relacionada a uma maior ingestão de líquidos.
Afinal, quando as pessoas dão início a uma rotina de consumo de suplementos, especialmente durante períodos de treinamento físico, elas normalmente bebem mais água. Consequentemente, fazem mais xixi.
- A creatina pode causar câncer?
Muita repercussão negativa surgiu após um artigo de revisão levantar a possibilidade de que o consumo de carnes cozidas e processadas, que contêm creatina e seu subproduto creatinina, poderia levar à produção de compostos com potencial cancerígeno, como as chamadas aminas heterocíclicas, que se formam durante o cozimento.
No entanto, essa formação ocorre apenas em condições específicas, como quando carnes são assadas em excesso. Além disso, está comprovado que a ingestão de suplementos de creatina nas doses adequadas, indicadas por um especialista, não leva a esse processo.
Além da revisão científica, o grupo internacional de pesquisadores realizou testes próprios para investigar essa hipótese. “A gente fez um experimento com doses e tempo de suplementação diferentes. Então, avaliamos por três meses a formação desses compostos carcinogênicos e não houve qualquer relação da ingestão de creatina em doses baixas ou altas com a formação deles”, descreve o pesquisador Hamilton Roschel.
- Café atrapalha a absorção da creatina?
No passado, circulou um estudo que indicava um possível prejuízo no efeito da creatina quando ela é consumida junto à cafeína, uma das principais substâncias encontradas no café. No entanto, pesquisas recentes não conseguiram reproduzir esse resultado. “Desse modo, é improvável que a cafeína prejudique o efeito da creatina”, afirma Gualano.
Alguns estudos, inclusive, notaram singelos benefícios a partir dessa união. No entanto, os cientistas destacam que não se sabe ainda não se há riscos na ingestão em longo prazo. Além disso, o uso concomitante das substâncias em excesso pode aumentar a sensação de dor gastrointestinal.
- Causa disfunção renal?
O mito já foi contestado muitas vezes, incluindo na primeira edição do artigo, mas sempre vale reforçar. “Em estudos anteriores, a gente testou a segurança da suplementação de creatina sob o ponto de vista da função renal em várias populações, inclusive aquelas com risco de desenvolvimento de doença nos rins”, conta Roschel.
Segundo o fisiologista e nutricionista, em nenhum desses casos houve alteração na função desse órgão. Porém, os efeitos entre pessoas que já possuem um comprometimento renal são desconhecidos.
- Afeta a pressão arterial?
Mito. Um dos estudos que refutam essa tese foi conduzido com dois grupos de mulheres na pós-menopausa e idade média de 59 anos. Uma parte consumiu 0,14 gramas de creatina por quilo de peso ao dia (seria o correspondente a 8,4 gramas da substância para uma mulher de 60 quilos, por exemplo), enquanto a outra parcela recebeu um placebo.
Ao fim do estudo, que durou dois anos, não houve diferença entre os grupos em termos de alterações na pressão arterial sistólica.
As principais verdades sobre a creatina
- Creatina é segura e eficaz
“Sabemos com certeza que a creatina melhora o desempenho físico em atividades de alta intensidade e curta duração. Também é consensual que a creatina é segura, ou seja, não provoca hipertensão, desidratação ou outros problemas frequentemente associados a ela de forma equivocada”, resume Gualano.
- Traz vantagens até para quem não pratica exercícios
Os cientistas são categóricos em afirmar que os melhores efeitos da suplementação de creatina estão associados ao exercício físico. Porém, evidências mostram que ela pode proporcionar alguns benefícios de desempenho muscular mesmo para os não praticantes, em alguns contextos.
Um dos estudos que embasa a posição dos pesquisadores observou que o uso de 20 gramas de creatina por dia por sete dias, mesmo sem intervenção de exercícios, foi capaz de aumentar o limite de fadiga muscular em 15,6% em homens e mulheres com idade entre 64 e 86 anos.
No entanto, a maioria das pesquisas que notaram essas melhorias usou uma fase de “carga” de creatina, isto é, uma dose alta, que pode ser usada por poucos dias. Estudos que não utilizaram essa estratégia não alcançaram o mesmo efeito.
“É importante saber que os benefícios bem consagrados da creatina mesmo são aqueles associados ao exercício. E, ainda assim, são benefícios marginais, pequenos, como os obtidos com qualquer suplemento nutricional. Não é algo que vai gerar mudanças da água para o vinho”, alerta Roschel.
- A creatina é benéfica para idosos
Há um crescente corpo de evidências mostrando que a suplementação de creatina pode ser uma aliada de peso para o envelhecimento saudável.
Segundo estudos, associar a suplementação à prática de exercícios é uma excelente estratégia para combater a perda de massa muscular e força, que ocorre naturalmente com o envelhecimento. Dependendo da magnitude dessa perda, é possível desenvolver uma doença chamada sarcopenia.
A patologia, que atinge entre 6 e 12% da população com mais de 60 anos e prejudica a realização de atividades do cotidiano, como caminhar ou levantar-se da cama, ainda desacelera o metabolismo, o que pode levar ao aumento de peso, complicando ainda mais a situação. Daí a importância de preservar a musculatura.
- Ajuda no desempenho físico mesmo em doses baixas
Dosagens diárias mais baixas de suplementação de creatina, de 3 a 5 gramas por dia, são tão eficazes quanto doses altas, de 20 a 25 gramas por dia, para aumentar o desempenho e a recuperação muscular.
Estudos mostram que tomar uma dose alta por alguns dias ajuda a alcançar o pico do estoque de creatina nos músculos mais rápido, mas doses diárias menores promovem o mesmo efeito, só levam um tempo maior para chegar ao mesmo nível.
Se a pessoa precisa de resultados rápidos, a fase de “carga” pode ser útil. Caso contrário, a suplementação contínua funciona bem. Além disso, para evitar desconfortos como diarreia, quem optar pela dose elevada deve dividir as porções ao longo do dia, não ultrapassando 10 gramas por vez.
O que ainda precisa ser melhor estudado:
- Cretina é seguro para grávidas?
A pergunta ainda não tem resposta exata. Em estudos preliminares, com animais, tem sido notado que o consumo do suplemento durante a gravidez não faz mal à mãe nem ao bebê. Algumas análises, inclusive, destacam que a substância pode ser vantajosa, prevenindo complicações em caso de quadros que podem acarretar em falta de oxigênio para o feto, entre outros.
No entanto, atualmente não há evidências disponíveis de ensaios qualificados com humanos que analisem a segurança do produto durante a gestação. Por isso, o uso segue não sendo recomendado, pois mais estudos são necessários.
- A creatina tem ação anti-inflamatória?
Há evidências preliminares de que o suplemento pode amenizar o processo inflamatório em humanos, segundo estudos que avaliaram o uso da substância por um curto prazo, especialmente após a prática de exercícios aeróbicos.
Apesar disso, ainda faltam mais pesquisas capazes de determinar os efeitos em longo prazo da creatina no combate a respostas inflamatórias que podem surgir durante os exercícios.
- Efeitos terapêuticos
Dados sugerem que a creatina tem o potencial de melhorar a recuperação dos músculos após lesões, cirurgias ou imobilização. No entanto, as informações ainda são escassas e conflitantes (alguns estudos indicam que a suplementação pode ajudar na recuperação da força e massa muscular em tratamentos, outros não encontram benefícios importantes).
Além disso, ainda é preciso esclarecer questões como a diferença entre os efeitos a curto e longo prazo e se os benefícios observados têm relação com a combinação com outras terapias, como a fisioterapia.
- Benefícios para o cérebro
Diversos cientistas investigam, nesse momento, se a suplementação com creatina pode melhorar a função cognitiva. No entanto, ainda não é possível esclarecer essa dúvida.
Quando tomamos o suplemento, o cérebro pode absorver mais dessa substância. No entanto, a absorção não é tão eficiente quanto nos músculos.
“A gente sabe que a creatina é armazenada e sintetizada por algumas células cerebrais, e que algumas condições levam à sua redução no cérebro, como a depressão. Nessas condições específicas, a suplementação pode eventualmente aumentar a concentração da substância no órgão, embora a gente não saiba ainda o melhor protocolo para isso”, explica Bruno.
“E a gente não sabe se, ao aumentar a creatina, é possível melhorar aspectos como função cerebral, memória, capacidade cognitiva, etc., principalmente para pessoas saudáveis. É um tema que ainda está na zona cinza”, diz.
- Cuidados para não cair em mitos
Gualano destaca algumas dicas para se proteger quando o assunto é mitos sobre suplementos.
O primeiro passo é sempre desconfiar de promessas exageradas, especialmente no mundo fitness. No caso de suplementos, o efeito é pequeno para a maioria das pessoas, sendo mais significativo para atletas.
“É importante, ainda, ter cuidado com quem vende experiências pessoais como se fossem científicas”, diz. Influenciadores com muitos seguidores, por exemplo, nem sempre são fontes confiáveis.
“O que garante confiabilidade é o currículo lattes, considerando a produção acadêmica, científica ou mesmo prática do profissional”, diz.
Fonte: Estadão