Trump contraria gerações da política externa americana ao se alinhar com a Rússia: 'Devem estar pulando de alegria no Kremlin'


Falas e gestos do presidente americano nas discussões sobre a guerra com a Ucrânia transparecem proximidade com o governo de Vladimir Putin

Trump e Putin em encontro durante o primeiro mandato do americano, em 2018 — Foto: Brendan Smialowski / AFP

Por mais de uma década, o Ocidente enfrentou o Oriente no que foi amplamente chamado de uma nova Guerra Fria. Mas com o presidente americano, Donald Trump, de volta ao cargo, os Estados Unidos dão a impressão de que podem estar mudando de lado.

Quando os negociadores dos EUA e da Rússia se reuniram na terça-feira pela primeira vez desde a invasão da Ucrânia por Moscou, há quase três anos, Trump sinalizou que está disposto a abandonar os aliados americanos para fazer um esforço em comum com o presidente da Rússia, Vladimir Putin.

Para Trump, a Rússia não é responsável pela guerra que devastou seu vizinho. Em vez disso, ele sugere que a Ucrânia é a culpada pela invasão russa. Ouvi-lo falar com repórteres na terça-feira sobre o conflito foi como ouvir uma versão da realidade que seria irreconhecível na Ucrânia, e que certamente nunca teria saído de qualquer outro presidente dos Estados Unidos, de qualquer partido.

Na versão de Trump, os líderes ucranianos foram os culpados pela guerra por não concordarem em ceder território e, portanto, sugere ele, eles não merecem um assento na mesa para as negociações de paz que ele acabou de iniciar com Putin.

— Vocês nunca deveriam ter começado — disse, referindo-se aos líderes ucranianos que, na verdade, não começaram nada. — Vocês poderiam ter feito um acordo.

Trump, Zelensky e Putin: três players na guerra entre Rússia e Ucrânia — Foto: AFP

Falando em sua mansão em Mar-a-Lago, na Flórida, ele continuou:

— Vocês têm uma liderança agora que permitiu que uma guerra continuasse, o que nunca deveria ter acontecido.

Em contraste, Trump não proferiu uma palavra de reprovação a Putin ou à Rússia, que invadiu a Ucrânia pela primeira vez em 2014, travou uma guerra de baixa intensidade contra o país vizinho durante todos os quatro anos do primeiro mandato do presidente americano e então a invadiu, em 2022, com o objetivo de dominar o país inteiro.

Trump está no meio da execução de uma das mais impressionantes mudanças na política externa dos EUA em gerações, uma virada de 180 graus que forçará amigos e inimigos a se recalibrarem de maneiras fundamentais. Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, uma longa lista de presidentes americanos olhava para a União Soviética (primeiramente) e, depois de uma breve e ilusória lacuna política, sua sucessora, a Rússia, como uma força a se observar com cautela, no mínimo. Trump dá toda a impressão de vê-la como uma colaboradora em futuras empreitadas.

Ele deixa claro que os EUA estão cansados de isolar Putin por sua agressão não provocada contra um vizinho mais fraco e o massacre de centenas de milhares de pessoas. Em vez disso, Trump, que sempre teve uma intrigante afeição por Putin, quer reintegrar a Rússia à comunidade internacional e torná-la uma das principais amigas dos EUA.

— É uma reversão vergonhosa de 80 anos de política externa americana — diz Kori Schake, diretora de estudos de Política Externa e de Defesa no American Enterprise Institute e ex-assessora de segurança nacional do presidente George W. Bush. — Durante a Guerra Fria, os EUA se recusaram a legitimar a conquista soviética dos Estados Bálticos, e isso deu ânimo às pessoas que lutavam por sua liberdade. Agora estamos legitimando a agressão para criar esferas de influência. Todo presidente americano dos últimos 80 anos se oporia à declaração do presidente Trump.

No círculo de Trump, a mudança é considerada uma correção necessária a anos de políticas equivocadas. Ele e seus aliados veem o custo de defender a Europa como muito alto, dadas outras necessidades. Ficar confortável com Moscou, nessa visão, permitiria que os EUA trouxessem mais tropas para casa ou transferissem recursos de segurança nacional para contenção da China, que eles veem como "a maior ameaça", como o secretário de Estado Marco Rubio disse no mês passado.

A virada americana foi anunciada ao longo da última semana. Dias depois do vice-presidente JD Vance fazer duras críticas aos aliados europeus, afirmando que as “ameaças de dentro” são mais preocupantes que a Rússia, Rubio se encontrou com o ministro das relações exteriores russo, Sergei Lavrov, para falar sobre “as oportunidades incríveis de uma parceria com os russos” se eles abrissem mão da guerra na Ucrânia.


Propostas para acordo

Não havia líderes ucranianos no encontro, em Riad, na Arábia Saudita. Muito menos outros europeus, embora Rubio tenha ligado para vários ministros de Relações Exteriores para brifá-los. Tudo apontou para o que seria um encontro entre dois grandes poderes dividindo áreas de dominância, como uma versão moderna do Congresso de Viena ou da Conferência de Yalta.

Trump vê Putin como um compatriota, um player forte e “muito experiente” cuja pressão na Ucrânia até o ponto da concessão por territórios parece “genial”. Aos olhos de Trump, Putin é digno de admiração e respeito, diferente de líderes de aliados tradicionais como Alemanha, Canadá ou França, para os quais ele demonstra desprezo.

O presidente americano passou o primeiro mês de seu segundo mandato endurecendo o cenário a seus aliados. Não só os deixou fora das conversas da Ucrânia, como vem ameaçando-os com tarifas, exigindo que eles aumentem seus gastos militares e sejam mais assertivos em relação a disputas por territórios. Elon Musk, apoiador bilionário de Trump, já apoiou publicamente o partida de extrema direita alemão Alternativa para a Alemanha (AfD).

As concessões que Trump e sua equipe fazem circular parecem uma lista de desejos do Kremlin: a Rússia fica com todos os territórios que tomou ilegalmente; os Estados Unidos não dão garantias de segurança aos ucranianos, muito menos permitem que eles se juntem à Otan, a aliança militar ocidental; e as sanções serão finalizadas. O presidente chegou a sugerir que a Rússia seja readmitida no G7 anos depois de sua exclusão, durante a primeira incursão à Ucrânia, em 2014.

Hospital destruído em Odessa, na Ucrânia — Foto: Oleksandr GIMANOV / AFP

E do que Putin teria que abrir mão por um acordo? Teria que parar de matar ucranianos enquanto colhe sua vitória. Trump não destacou qualquer outra concessão que gostaria, nem mostrou se é possível confiar em Putin, que já violou um pacto pela soberania da Ucrânia de 1994, e dois acordos de cessar-fogo fechados em Minsk (na Bielorrússia), em 2014 e 2015.

A repórteres na última terça-feira, Trump fez parecer que considera a Rússia uma amiga, o que não se estende à Ucrânia.

— A Rússia quer fazer alguma coisa. Querem parar com a selvageria e a barbárie.


Novas eleições

O americano se mostrou consternado com a destruição causada pelo que chamou de “guerra sem sentido”, comparando as cenas com as da batalha de Gettysburg (durante a Guerra de Secessão), “com pedaços de corpos por todo o campo de batalha”. Trump diz que a Ucrânia está sendo “varrida” e a guerra tem que terminar. Mas não disse quem está varrendo a Ucrânia, deixando claro que responsabiliza seus líderes e colocando de lado a insistência deles em ser parte das negociações.

— Sei que eles estão chateados que não estarão na mesa de negociações. Eles estiveram nela por três anos e por um bom tempo antes disso — disse. — As coisas poderiam ter sido resolvidas facilmente. Até um negociador inexperiente poderia acertar as coisas anos atrás sem a perda de muitas fatias de terra, e sem perda de vidas e de cidades que foram destruídas.

Trump também fez críticas ao presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, dizendo mais de uma vez que ele tem menos de 4% de aprovação. De fato a aprovação de Zelesnky caiu dos níveis estratosféricos em que estava, mas para 50%, não muito diferente da de Trump.

Trump também defende o argumento russo de que a Ucrânia deveria ter novas eleições para fazer parte das negociações. Na quarta-feira, ele chamou Zelensky de "um ditador sem eleições".

— Eu diria que se querem estar na mesa, o povo deveria… os ucranianos não deveriam dizer que faz muito tempo desde que tiveram uma eleição? Isso não é algo que vem da Rússia, vem de mim e de outros países — disse, sem revelar que outros países seriam esses, ou dizer algo sobre a necessidade de eleições na Rússia, onde as votações são controladas pelo Kremlin e por seus aliados.

As falas de Trump não foram roteirizadas, mas respostas a perguntas de repórteres. Mas indicam como ele vê a situação e dão uma mostra do que serão os próximos meses. E sacudiram a Europa, que agora tem que lidar com o fato de que seu principal aliado na nova Guerra Fria não se vê mais dessa forma.

“Essas foram algumas das falas mais lamentáveis que já ouvi de um presidente em toda minha vida. Trump está tomando o lado do agressor e culpando a vítima. Devem estar pulando de alegria no Kremlin”, escreveu Ian Bond, diretor do Centro para a Reforma Europeia em Londres.

Fonte: O Globo




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