Ocultos por séculos, manuscritos medievais que contam início da lenda do rei Arthur são descobertos em Cambridge


Copiados por um escriba entre 1275 e 1315, textos foram usados para reforçar encadernação de livro contável e foram encontrados em biblioteca

Assim era o antigo manuscrito sobre Merlin recuperado por pesquisadores da Universidade de Cambridge — Foto: Biblioteca da Universidade de Cambridge / The New York Times

Rasgados, dobrados, costurados e encadernados em um livro de registros de propriedades do século XVI, raros contos que mostram Merlin se transformando na corte do rei Arthur e Sir Gawain ganhando poder do sol passaram despercebidos por séculos, primeiro empilhados entre os arquivos de uma mansão inglesa e depois entre os milhões de volumes de uma biblioteca universitária.

Isso até que um arquivista olhou novamente, dando início a um projeto de anos para identificar e reconstituir o manuscrito medieval, que havia sido desmontado na Inglaterra dos Tudor e utilizado para reforçar a encadernação de um livro contábil.

O manuscrito revelou-se uma descoberta inestimável: histórias arturianas extremamente raras, copiadas por um escriba entre 1275 e 1315, e parte da "Suite Vulgate du Merlin", uma sequência em francês antigo do início da lenda do rei Arthur. Pesquisadores da Universidade de Cambridge anunciaram suas descobertas esta semana e publicaram online uma versão digitalizada do manuscrito.

Existem menos de 40 cópias conhecidas da sequência "Suite Vulgate", e nenhuma delas é idêntica.

“Cada cópia manuscrita de um texto medieval, escrita à mão por um escriba, sofre pequenas alterações”, explicou Irène Fabry-Tehranchi, especialista em francês antigo da biblioteca da universidade. “Cada escriba impõe seu próprio gosto ao texto.”


O conteúdo do manuscrito

O manuscrito conta duas histórias. A primeira narra as aventuras de Sir Gawain, sobrinho do rei Arthur, que enfrenta tanto barões rebeldes em casa quanto saxões pagãos invasores. Um desses nobres insurgentes é o próprio pai de Gawain, e ele se alia a Arthur para derrotá-lo. Depois, a batalha é contra os saxões.

Empunhando a lendária espada Excalibur, Gawain torna-se mais poderoso à medida que o sol nasce, atingindo sua força máxima ao meio-dia. Sua vitória pelo lado de Arthur é previsível, mas ainda assim satisfatória.

Na segunda história, Arthur e sua rainha, Guinevere, estão presidindo um banquete quando são interrompidos por um visitante misterioso: um harpista cego, guiado por um cão branco. Encantado com sua música, Arthur concorda com o estranho pedido do homem: carregar o estandarte do rei no campo de batalha — um desejo aparentemente suicida.

O harpista, no entanto, é Merlin disfarçado, algo que a corte só percebe muito depois. “Graças à magia de Merlin, o estandarte se transforma em um dragão mágico que cospe fogo no campo de batalha”, explicou Fabry-Tehranchi.

Na época de sua criação, o manuscrito era um item de luxo, acrescentou Fabry-Tehranchi, provavelmente importado para a Inglaterra por aristocratas que falavam francês antigo, à medida que os romances arturianos se popularizavam. Com o tempo, conforme essas histórias foram traduzidas para o inglês, o valor de tais manuscritos diminuiu.

A menos que alguém precisasse encadernar documentos soltos. Isso pode explicar por que, no século XVI, alguém na Huntingfield Manor, em Suffolk, decidiu usar o velho pergaminho como material para reforçar a encadernação de um livro de registros.


Um quebra-cabeça medieval

A coleção da mansão chegou à Universidade de Cambridge na década de 1970, mas foi apenas em 2019 que um arquivista percebeu que o manuscrito oculto merecia um exame mais detalhado. O processo minucioso levou anos, pois o frágil manuscrito havia sido reaproveitado dentro de um livro que já tinha séculos de idade.

“Tivemos que explorar cada canto e detalhe desse objeto”, disse Fabry-Tehranchi.

Para revelar o conteúdo do antigo manuscrito de Merlin, os pesquisadores usaram tecnologia avançada — Foto: Biblioteca da Universidade de Cambridge / The New York Times

Para revelar detalhes invisíveis a olho nu, os pesquisadores usaram imagens multiespectrais, que capturam diferentes comprimentos de onda de luz, como ultravioleta e infravermelho. Com a ajuda do departamento de zoologia, também utilizaram um scanner de tomografia computadorizada — geralmente empregado na análise de fósseis — para examinar as camadas do pergaminho sem desmontar fisicamente o livro.

Os restauradores ainda recorreram a espelhos, ímãs, prismas e outras ferramentas ópticas para fotografar centenas de partes ocultas do manuscrito, dobradas ou costuradas à encadernação. O resultado foi um verdadeiro quebra-cabeça medieval em francês antigo que precisou ser remontado para formar um texto legível.


Implicações da descoberta

“Esse projeto é fabuloso, especialmente pelo uso de novas tecnologias para recuperar a cultura material do passado, que pode sobreviver fisicamente, mas permanecer inacessível por diversas razões”, disse Hannah Weaver, professora de literatura medieval da Universidade de Columbia, que não participou da pesquisa.

Para Weaver, o mais impressionante não foi apenas a inovação tecnológica na análise de imagens, mas as possibilidades que isso abre para futuras investigações.

“O que realmente me surpreendeu foi o desdobramento digital do manuscrito”, afirmou. “Mal posso esperar para ver essa técnica aplicada a outros manuscritos difíceis de manusear.”

Fonte: O Globo




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