O menino que voou de Angola para o Brasil como clandestino porque queria morar com Martinho da Vila


Sambista, que faz show neste sábado para celebrar o país africano, relembra episódio de garoto de 10 anos que viajou sozinho e sem documentos para encontrá-lo, em 1980

Martinho da Vila com o menino Gonçalves Antonio, triste na despedida no Galeão — Foto: Antonio Nery/Agência O GLOBO

Martinho da Vila tem uma ligação profunda com Angola. Nem sabe dizer quantos shows fez no país africano ao longo de décadas. Durante uma apresentação na sua primeira viagem, em 1969, seis anos antes de o governo local se declarar independente de Portugal, ele se lembrou de que aquele era o dia 7 de setembro. No palco, dirigindo-se ao público, o cantor disse: "Hoje é um dia importante no Brasil, dia de celebrar nossa independência, espero encontrar um país livre quando voltar aqui".

- Achei que ia todo mundo bater palmas, mas o público ficou em silêncio total - relembra Martinho, que neste sábado apresenta, no Circo Voador, o show "Canto Livre de Angola". - Logo depois, ouvi alguém batendo palmas, e em questão de segundos virou uma ovação completa. Só que, no fim do show, teve confusão. Alguém gritou "Angola livre!", a polícia chegou e começou a prender. Até hoje, um pessoal lá acha que foi uma atitude importante para a independência do país. Eu me considero meio angolano.

Viagem após viagem, o cantor passou a ser amado pelo povo local. Em 1980, o sambista esteve em Angola como parte de uma excursão que incluía artistas como Chico Buarque, Clara Nunes e Dorival Caymmi. O grupo passou dias percorrendo o país. Por toda parte, uma multidão se reunia em volta de Martinho. Sempre muito requisitado, almoçava na casa de um, jantava na casa de outro. E, aonde quer que fosse, lá estava o menino Gonçalves Antônio Sobrinho, de 10 anos, um fã do sambista.

- Ele sempre perguntava se podia ir junto, e eu dizia que sim. Era um garoto muito esperto - recorda-se o sambista. - Quando estava indo embora, ele disse que vinha me visitar no Brasil e quis saber como fazer para me encontrar. Eu respondi que era só chegar em Vila Isabel e perguntar por mim, falei que qualquer pessoa saberia dizer onde eu morava. Era uma criança, eu estava achando graça e levando na brincadeira, não podia imaginar que ele fosse realmente atravessar um oceano pra me encontrar.

Martinho da Vila e sua mulher, Cleo Ferreira, em Angola, nos anos 1990 — Foto: Arquivo pessoal

Martinho sofreu uma estafa naquela excursão. Nem completou o show no último dia, necessitou de cuidados médicos e, depois de desembarcar no Rio, no dia 18 de maio daquele ano, foi internado no Pró-Cardíaco, em Botafogo, para fazer uns exames no coração e ver se estava tudo bem.

No dia 25 do mesmo mês, O GLOBO publicou uma matéria com o título: "Menino veio de Angola para morar com Martinho da Vila". Parecia história de filme, mas o pequeno Gonçalves Antonio realmente embarcou de forma clandestina em um avião da TAP em Luanda e desembarcou no Rio, passando pelos agentes federais de ambos os aeroportos. Depois, entrou em um táxi e disse para o motorista o levar para a casa do Martinho da Vila. Tinha anotada na mão uma única informação: "Grajaú".

- Ele passou pelo controle de passaporte em Angola dizendo que a mãe dele estava vindo logo atrás. Fez a mesma coisa no Rio - relata Martinho, 45 anos depois. - Hoje isso seria inacreditável.

Gonçalves Antonio com músicos na casa de Martinho, no Grajaú — Foto: Antonio Nery/Agência O GLOBO

O taxista rodou bastante tempo com o garoto perguntando no Grajaú onde o sambista morava, mas não descobriu e resolveu levar o menino na Rádio Globo para pedir ajuda ao locutor Haroldo de Andrade. Àquela altura, Martinho estava descansando em Duas Barras, sua cidade natal, na Região Serrana do Rio, mas sua companheira na época, Lícia Caniné, a Ruça, foi acionada e decidiu ir até a rádio conhecer o menino, ao lado do empresário Vitor Roberto, que logo reconheceu Gonçalves.

"Ele chegou a deixar uma mala no nosso hotel, mas pedi ao gerente que devolvesse", contou Roberto, segundo o GLOBO na época. "Todos o conheciam, ele chorou muito quando Martinho veio embora".

Graças a uma autorização judicial, Ruça conseguiu levar o menino para passar o fim de semana com o cantor em Duas Barras. Mas, na segunda-feira, o Juizado de Menores decidiu que ele teria que voltar para Angola. Na véspera do embarque, Gonçalves passou o dia no Rio com a família de Martinho. Andou de bicicleta no Grajaú, brincou com os instrumentos na casa do cantor e saiu para passear com Ruça, que o levou para fazer compras em um shopping center e para conhecer o Pão de Açúcar.

- A gente tinha que ficar o tempo todo de olho, porque ele saía andando por aí, e não podíamos perder o garoto de vista - relembra o sambista, que perdeu contato com o garoto depois da volta dele à África.

O cantor continuou servindo de ponte entre Brasil e Angola. Em 1982, ele gravou o LP "Canto Livre de Angola" e idealizou um show com cantores do país no Oeste da África. Em 1984, o músico foi um dos organizadores do Kizomba, um festival de arte negra que tinha delegações de Angola e outras nações do continente. Em 1992, lançou o livro "Kizombas, andanças e festanças", com o relato de suas visitas ao país. Mais tarde, recebeu o título de embaixador cultural honorário de Angola.

Entre abril e maio deste ano, Martinho esteve mais uma vez no país para apresentar o show "Canto Livre de Angola", como parte da celebração dos 50 anos da independência local. Ao retornar, decidiu fazer o espetáculo no Rio. O show festeja a música africana com canções como "Os meninos à volta da fogueira", do poeta Manoel Rui Monteiro. Mas não faltarão sucessos da carreira de Martinho da Vila, como "Devagar devagarinho", "Casa de bamba", "Canta canta, minha gente" e "Ex-amor".

- Vou fazer um show pra todo mundo dançar e cantar junto, bem alegre - garante o sambista.

Despedida de Gonçalves Antonio na casa de Martinho — Foto: Antonio Nery/Agência O GLOBO

Fonte: O Globo




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