O ex-presidente do Uruguai ficou conhecido não só pelas boas respostas, mas por doar a maior parte do seu salário e dirigir o fusca azul 1987

Enquanto o ex-presidente uruguaio dormia, Lucía Topolanski mostrou a chácara presidencial e o famoso fusca de 'Pepe' Mujica
Pepe Mujica morreu na chácara em que viveu pregando, pelo exemplo, um modo de vida. Afirmar que o lugar é simples não retrata o quão simples ele é. Mujica também falava simples. Dizia coisas compreensíveis e sensíveis, o que o tornou uma espécie de oráculo, sobretudo para a esquerda que ele representava. Era questionado sobre tudo, até sobre política.
Ficou conhecido não só pelas boas respostas, mas por doar a maior parte do seu salário e dirigir o fusca azul 1987 que ganhou fama mundial - e pelo qual rejeitou US$ 1 milhão de um xeque árabe.
Em 2014, a mulher dele, a então senadora Lucía Topolansky, guiou o Estadão em uma visita pela chácara do Rincón del Cerro, a meia hora do centro de Montevidéu. Mujica estava prestes a deixar o mandato iniciado em 2010 e manteve sua rotina de agricultor enquanto ela, que assumiria o poder brevemente na semana seguinte, era entrevistada.

O ex-presidente do Uruguai, José Mujica, participa de uma homenagem a seu governo durante um comício do partido Frente Ampla, em Montevideo Foto: Sofia Torres/AFP
Sentada ao lado do poço que abastecia o casal, ela atribuiu a popularidade dele a um desvio de outros líderes. “Alguns valores se perderam. Nosso modo de vida não deveria parecer tão estranho”, disse a também ex-guerrilheira conhecida pelo apelido “La Tronca”, conquistado pela escassa maleabilidade ou, na definição de Mujica, teimosia.
Dentro de um galpão, Lucía mostrou o bem mais valioso da família, o fusca. “A vantagem é que pagamos pouco imposto, qualquer mecânico conserta e encontramos peças até em farmácias”, exagerou. Questionada por que haviam recusado a proposta milionária pelo carro, disse: “Foi presente de amigos. Ele achou que vender algo que ganhou seria uma falta de educação. Está certo”.
Em meio à explicação, ouviu-se Mujica estacionando o trator com o qual plantava flores. Lucía explicou que ele iria então sestear com Manuela, sua inseparável cadela de 3 patas, morta aos 22 anos em 2018. Algumas imagens daquela visita deram origem a um vídeo intitulado “Mujica dorme”.

O ex-presidente do Uruguai, José Mujica, dirige o seu famoso fusca perto de sua chácara nos subúrbios de Montevidéu Foto: Pablo Bielli/AFP
Meia hora após ele deitar, ela permitiu então uma visita à casa de três ambientes. Cochichando em meio ao sono do marido, ela apontou a cozinha, onde ele fazia o chimarrão e ela, a comida. Exibiu a sala com retrato de Che e livros. Pela fresta da porta entreaberta do quarto, podia-se ouvir um ronco moderado ver o dedão do pé presidencial. O lugar simples era um reflexo do morador.
Tal perfil deu a este esquerdista latino-americano capaz de criticar as ditaduras da Venezuela e Honduras, senão um salvo-conduto, um escudo contra críticas mais pesadas da direita. Mais do que isso. Paradoxalmente, seu modo de vida tornou-se útil à argumentação dos adversários: “É o único esquerdista que viveu como pregou”, postaram alguns conservadores após sua morte.
Lucía e Mujica se conheceram na guerrilha. Ela foi presa em 1972. Ele foi detido quatro vezes e fugiu duas – no total, ficou quase 15 anos preso. Quando deixaram a prisão em 1985 e mudaram-se para o Rincón del Cerro. Mujica tinha uma história mais dura. A mais conhecida são suas longas conversas com ratos na solitária. Foi deputado em 2000, senador em 2005 e presidente em 2010.

O então presidente do Uruguai, José Mujica, e sua esposa Lucia Topolansky, participam de uma cerimônia em Montevideo, Uruguai Foto: Matilde Campodonico/AP
Instigada a apontar um defeito no marido, Lucía o comparou a uma “calderita” que ferve e esfria rápido. A espontaneidade que explica a popularidade de Mujica rendeu causos e alguns constrangimentos diplomáticos. Naquele mesmo 2014, chamou o México de Estado falido. Em 2013, disse “esta velha é pior que o caolho”, referindo-se a Cristina e a Néstor Kirchner. A um jornalista japonês impressionado com o mofo na parede da casa pintada com cal, explicou por que não tinha empregada. “Gosto de ir de cuecas ao banheiro.”
Na época da visita do Estadão, Mujica estava prestes a deixar a presidência. O Uruguai não permite a reeleição direta e a Frente Ampla seria representada por Tabaré Vázquez, que saiu vitorioso. Mesmo após deixar o cargo, no entanto, Mujica se manteve ativo na vida política, até começar a se despedir dos apoiadores. Durante as eleições do ano passado, ele apareceu de surpresa no comício de Yamandú Orsi e fez discurso em tom de despedida.
No começo deste ano, pediu que o deixassem descansar. “O que estou pedindo é que me deixem em paz. Não me peçam mais entrevistas nem nada. Meu tempo acabou. Sinceramente, estou morrendo”, disse em entrevista. Morreu aos 89 anos, de câncer. Seus admiradores preferiram ontem o viés otimista: “Ele só reencontrou Manuela”, escreveram alguns. A cachorrinha foi sepultada na chácara. Um dos últimos desejos de Mujica foi ser enterrado perto dela. Ele será atendido: o corpo do ex-presidente será cremado na quinta-feira, após 24h de um velório público. As cinzas serão enterradas na chácara, ao lado do túmulo de Manuela.
Fonte: Estadão