Cidade de 10 mil habitantes vira 'colônia de férias' para influenciadores, mas atrai também crime organizado


Igaratá, no interior de São Paulo, é frequentada por funkeiros que até criaram músicas com referências ao município; investigações apontam presença do PCC na cidade

Vista aérea de Igaratá: represa da cidade atrai endinheirados de São Paulo aos fins de semana — Foto: Edilson Dantas

A pequena cidade de Igaratá (SP) foi alagada no fim da década de 1960, quando todos os moradores foram removidos de suas casas para a construção de uma represa que ajudaria no desenvolvimento da região do Vale do Paraíba. Agora, os pouco mais de 10 mil habitantes do município testemunham uma nova inundação, desta vez de influenciadores e funkeiros atraídos justamente pelas águas daquela represa, e pelo fato de que esse oásis fica a só 100 quilômetros da capital paulista. Como efeito colateral, o hype tem chamado também a atenção de pessoas investigadas por associação ao crime organizado.

A represa do Jaguari é emoldurada por mansões e rodeada por sete cachoeiras. Serve como playground para fãs de lanchas, jet-skis e toda a sorte de esportes náuticos. Aos fins de semana, o tráfego na água é tão intenso que o barulho dos motores chega a incomodar alguns moradores. Não são raros os acidentes por ali.

Nascido na Zona Norte da capital, Clayton Levi, de 45 anos, é dono de uma náutica que guarda embarcações avaliadas em até R$ 1,5 milhão e que é frequentada por empresários, políticos e jogadores de futebol com suas famílias. Ele conta que o perfil dos visitantes da represa começou a mudar nos últimos quatro ou cinco anos.

— Acho que não existe crescimento que não traga problemas. Essa fama tem o seu lado bom, que é trazer mais pessoas. Tenho clientes que conheceram aqui porque os filhos viram nas postagens de influenciadores. Os imóveis também valorizaram muito. Mas também trouxe um pouco de bagunça, que acaba assustando moradores mais antigos — conta Clayton, que costuma ele próprio percorrer a represa para recolher lixo deixado para trás após os fins de semana mais agitados.


‘Medley Igaratá’

Jovem pilota moto aquática em frente a mansão à beira da represa em Igaratá; imóvel pertence a homem delatado por Gritzbach — Foto: Edilson Dantas

O MC Ryan foi um dos funkeiros que gravaram clipes na represa, e as recorrentes excursões de músicos à cidade levaram ao surgimento de uma série de hits, os “Medley Igaratá”, que fazem sucesso no TikTok. “Vou te levar pra Igaratá, pra transar e andar de lancha”, diz um dos trechos publicáveis da terceira edição do “medley”, interpretada pelo MC Negão Original.

No último Natal, foi num sítio da cidade que o rapper Oruam gravou um vídeo fazendo disparo com uma arma apontada para o céu. As imagens motivaram a abertura de uma investigação que levou a Polícia Civil do Rio a deter o cantor em fevereiro. O processo por suposto crime contra o Sistema Nacional de Armas segue em tramitação no Foro de Santa Isabel, município vizinho a Igaratá.

O influenciador digital Buzeira, que conta com quase 13 milhões de seguidores no Instagram, possui uma mansão avaliada em R$ 18 milhões à beira da represa. No passado, o imóvel era frequentado pelo empresário e pagodeiro Vagner Borges Dias, o Latrell Brito, preso no início do ano sob suspeita de fraudar licitações para favorecer empresas ligadas ao Primeiro Comando da Capital (PCC).

As ligações da organização criminosa com Igaratá não são poucas. Um promotor do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) disse, em reserva, que “dificilmente” encontra investigações em que nenhum alvo tenha vínculos com a cidade, seja frequentando, investindo, ou sendo relacionado a alguma pessoa que se enquadre em alguma dessas situações.


‘Todo mundo lá’

Grupo se diverte com motos aquáticas; acidentes não são raros na represa — Foto: Edilson Dantas

A cidade teria, por exemplo, sido palco para uma festa em comemoração à morte do delator do PCC Vinicius Gritzbach, em novembro. Quatro dias após o assassinato, o irmão de Kauê do Amaral Coelho, homem apontado como o olheiro que denunciou a localização do empresário aos atiradores no Aeroporto de Guarulhos, enviou mensagem a um amigo para convidá-lo: “Vamo aí pra Igaratá. Todo mundo lá. Comemorando”, escreveu João Victor Amaral Coelho.

Um dos nomes delatados por Gritzbach, Ademir Pereira de Andrade também tem uma mansão à beira da represa da cidade — com direito a uma réplica do Cristo Redentor ao lado da piscina. Ademir atuava como uma espécie de operador financeiro e laranja do PCC. Seu imóvel no município é vizinho à mansão em que foi preso Caio Bernasconi Braga, o Fantasma da Fronteira, traficante que enviava toneladas de cocaína para a Europa.

O turismo náutico de Igaratá também já foi um atrativo para policiais militares suspeitos de envolvimento com a facção. Segundo a Corregedoria da PM, ao menos três agentes frequentavam sítios de criminosos para andar de jet-ski. Os imóveis seriam de conhecidos do cabo Vagner de Deus Leão, ex-integrante da agência de inteligência da Rota acusado de repassar informações da polícia para integrantes do PCC.

Apesar das investigações, o delegado da cidade, Cláudio Boto, rechaça a ideia de que Igaratá se tornou uma colônia de férias para criminosos. Ele diz que, apesar do hype em torno de Igaratá, o local segue pacato e com poucas ocorrências policiais.

— Igaratá é uma cidade turística. Muita gente vem pra cá por causa da proximidade com São Paulo. O que tem acontecido é que muitos youtubers e influencers têm alugado chácaras para fazer festas. Aí surgem reclamações de perturbação de sossego. Às vezes a prefeitura até tenta barrar esses eventos — disse.

Para Clayton, o dono da náutica citada ao início desta reportagem, seu maior desafio hoje não vem da algazarra trazida pelos influenciadores, mas da falta de mão de obra disponível para atender a crescente demanda.

— A cidade precisa de uma política mais estruturada de incentivo ao turismo. Quem vem aqui se apaixona, não culpo essa molecada — brinca.

Fonte: O Globo



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