Condição pode ter início ainda na infância, mas geralmente é identificada no começo da fase adulta, com o surgimento dos primeiros relacionamentos amorosos
A bióloga Mariana (nome fictício), hoje com 40 anos, recebeu o diagnóstico de transtorno de personalidade borderline (TPB) aos 27. Na época, vivia um relacionamento difícil, que despertava emoções intensas — e foi justamente isso que a motivou a buscar ajuda médica. “Era tudo à flor da pele. Eu percebia que não era normal, porque me tirava completamente do eixo”, lembra. “Cheguei a um ponto em que não conseguia mais trabalhar, precisei me afastar. Achava que estava com depressão, talvez ansiedade. E foram esses, inclusive, os primeiros diagnósticos que recebi.”
Entre as emoções mais difíceis de manejar, o medo de abandono ocupava um lugar central — e se intensificava diante de um parceiro que evitava compromissos, mas queria ter controle sobre a relação. “Foi uma espécie de kriptonita”, conta. “Ele se aproveitava do meu medo, e isso me desestabilizava a ponto de eu não conseguir cumprir tarefas simples do dia a dia. Eu ficava presa naquela sensação de que seria abandonada.”
Além disso, Mariana já havia passado por tentativas de suicídio e possuía outras características marcantes do transtorno: impulsividade, mudanças bruscas de humor, intensidade emocional e dificuldade de separar o que sente do que faz. “Se meu cachorro fica doente, por exemplo, isso impacta meu trabalho. Não tem como. Eu não consigo ser essa pessoa que deixa a emoção de lado. E isso me frustra, porque, às vezes, eu queria estar 100% presente.”

Medo de abandono, impulsividade, mudanças bruscas de humor e intensidade emocional estão entre os sintomas do transtorno de personalidade borderline, ou TPB. Foto: Jorm Sangsorn/Adobe Stock
Foi em 2013, durante uma conversa com um colega psicólogo, que surgiu a primeira pista de que seu quadro poderia estar relacionado ao transtorno borderline. Apesar dos diagnósticos de depressão e ansiedade, ainda parecia faltar uma peça. “Na época, eu só queria dar um nome para tudo aquilo”, lembra. “Nunca esqueci do que o psiquiatra me disse naquele dia: ‘Esse diagnóstico é seu, você não precisa sair contando por aí’. Hoje, entendo que era um conselho de cuidado. O borderline ainda é muito mal representado, cheio de estereótipos. Costumam mostrar como alguém manipulador, explosivo... Mas não é bem assim. Pode até acontecer, mas cada pessoa vive o transtorno de um jeito.”
Uma das características que ela reconhece em si mesma é a tendência a enxergar tudo em extremos. Com isso, pequenas decepções podem ganhar uma proporção desmedida. “Eu achava que odiava uma pessoa de verdade, mas depois me perguntava: será que ela merece tudo isso, ou sou eu vendo tudo em preto e branco de novo?”. Essa capacidade de questionar veio depois do diagnóstico. Antes, era só emoção. “É um turbilhão que te leva, e você só sente. Depois do diagnóstico, você aprende a frear: parar, respirar, consultar a realidade. É isso mesmo ou é meu transtorno falando mais alto?”.
Por outro lado, ela acredita que essa sensibilidade também faz com que muitas pessoas com transtorno borderline sejam, na verdade, pessoas muito empáticas. “A maioria de nós cresceu em ambientes caóticos, e isso fez com que a gente aprendesse a observar tudo. Um tom de voz, uma expressão facial, um corpo mais fechado… São pessoas sensíveis às sutilezas da comunicação, sabem quando o outro não está bem, se tem algo incomodando, porque tiveram que aprender a ler os outros como forma de proteção.”
Com o tempo, ela também entendeu que certos tipos de vínculo, especialmente os instáveis ou ambíguos, podem funcionar como gatilhos. Não à toa, resolveu ficar um tempo longe das relações amorosas. “Quando um relacionamento vai mal, ele implode tudo: trabalho, sono, saúde. Hoje em dia, eu simplesmente reconheço que não dá, que há coisas mais importantes para serem cuidadas.”
‘Borderline’ significa ‘limítrofe’
No filme “Garota, Interrompida”, a personagem Susanna, interpretada por Winona Ryder, está sentada em um hospital psiquiátrico quando ouve, pela primeira vez, o diagnóstico de borderline. “Borderline entre o quê e o quê?”, ela questiona o médico. A dúvida reflete o próprio significado do termo: “borderline” significa “limítrofe” — ou seja, algo que está entre dois estados.
Por muito tempo, acreditava-se que o TPB ocupava um lugar “no meio do caminho” entre a neurose e a psicose. Ou seja, não se encaixava claramente nem nos quadros neuróticos (como ansiedade e fobias) nem nos psicóticos (como a esquizofrenia). Era visto como um transtorno que ficava na fronteira imprecisa entre o controle e o descontrole da mente.
“Hoje, sabemos que essa é uma visão ultrapassada”, afirma o psiquiatra Erlei Sassi, coordenador do Ambulatório de Transtornos de Personalidade e do Impulso do Instituto de Psiquiatria (IPq) da USP. Segundo ele, trata-se de uma condição bem definida, com critérios e manifestações clínicas consistentes, ainda que complexas.
Para chegar ao diagnóstico, a psiquiatria considera nove critérios. Se a pessoa apresenta pelo menos cinco deles, o transtorno pode ser identificado. Um dos mais comuns é o medo intenso de abandono.
“O que a gente mais vê são pessoas que acreditam que não vão conseguir viver sozinhas. Elas buscam alguém que represente segurança, um porto seguro. Pode ser um parceiro, uma parceira... Às vezes, esse vínculo simbiótico é com a mãe. É aquele filho que não consegue se afastar, que reclama do controle, mas ao mesmo tempo espera que ela resolva tudo. No fundo, é isso: um medo muito grande da solidão”, explica a psiquiatra Fernanda Martins, também coordenadora do ambulatório no IPq.
Esse padrão tende a se intensificar no início da vida adulta, quando surgem os primeiros relacionamentos afetivos mais sérios — e, por isso, é comum que o diagnóstico aconteça nessa fase. “É frequente que, ao começar uma relação, a pessoa sofra só de imaginar a possibilidade de rejeição. Se o outro demora a responder uma mensagem, isso pode ser interpretado como desinteresse. Convida para sair e a pessoa diz que não pode? Pronto, vem a certeza de que aquilo não vai dar certo. E, às vezes, para não correr o risco de ser deixada, ela termina antes, na tentativa de se proteger do abandono que imaginou.”
Além desse padrão, o transtorno pode envolver outros sintomas, que variam em intensidade e de pessoa para pessoa:
1) Padrão de relacionamentos interpessoais instáveis e intensos
Pessoas com TPB costumam viver relacionamentos marcados por extremos emocionais. Em um momento, idealizam o outro (“é a melhor pessoa que já conheci”); no seguinte, desvalorizam com a mesma intensidade. Como resume Mariana: “É como ver tudo em preto ou branco”.
2) Perturbação da identidade
A autoimagem pode ser bastante instável. A pessoa muda de ideia sobre quem é, o que quer da vida, seus valores e preferências. Como explica Sassi, a identidade é formada por diferentes dimensões, como sexualidade, religiosidade, origem, a forma como se enxerga e como acredita ser vista pelos outros. “Todos esses são componentes da identidade. E, no transtorno de personalidade borderline, eles tendem a ser muito pouco estáveis.”
3) Impulsividade em pelo menos duas áreas que podem ser prejudiciais
A impulsividade no transtorno costuma aparecer em comportamentos que trazem risco ou prejuízo. “Alguns pacientes compram sem necessidade, gastam muito dinheiro sem planejamento. Outros têm relações sexuais sem proteção, se envolvem com jogos, drogas ou álcool de forma prejudicial, e por aí vai”, detalha Sassi.
4) Ideações suicidas recorrentes ou automutilação
Embora nem todas as pessoas com transtorno borderline se automutilem, esse comportamento é comum entre os pacientes. Esses episódios geralmente estão ligados a emoções muito intensas, como culpa e vergonha. “Alguns pacientes recorrem ao corte ou a outras formas de se machucar como uma maneira de lidar com a culpa. É como se a dor física ajudasse a aliviar ou ‘expurgar’ o sofrimento emocional”, explica o especialista.
“Em muitos casos, a culpa surge após uma briga, quando a pessoa tenta compensar, pedindo desculpas ou fazendo algum gesto, como dar um presente. Pode ser que ela tenha provocado uma cena de ciúmes em uma festa ou causado um conflito por insegurança, e logo depois venha a vergonha. De modo geral, a culpa está mais associada à automutilação, enquanto a vergonha costuma estar ligada às tentativas de suicídio”, acrescenta.
5) Instabilidade afetiva
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Aqui, o que muda rapidamente são os estados emocionais. Trata-se de variações bruscas de humor, que podem durar de minutos a horas. É importante destacar, porém, que isso é diferente do transtorno bipolar. Neste caso, o humor da pessoa pode oscilar sem um motivo externo claro. Já no transtorno borderline, a instabilidade emocional é muito mais rápida e diretamente relacionada ao que acontece no dia a dia, especialmente nas relações interpessoais.
6) Sentimentos crônicos de vazio
A pessoa pode experimentar uma sensação persistente de vazio e falta de propósito, que se manifesta em um desânimo que parece não passar. Embora isso remeta à depressão, existem diferenças. No borderline, a sensação está muito ligada à instabilidade emocional e à dificuldade de construir uma percepção consistente sobre si mesma. Já a depressão, mesmo que envolva a sensação de vazio, costuma vir acompanhada de outros sintomas específicos que nem sempre estão relacionados às relações interpessoais ou à identidade pessoal.
7) Raiva intensa e inadequada
A pessoa pode apresentar explosões de raiva, irritabilidade frequente e dificuldades em lidar com sentimentos de frustração.
8) Sintomas dissociativos
Em situações de estresse, pode haver uma sensação de que o mundo está irreal (desrealização) ou de estar fora do próprio corpo (despersonalização).
“É como um rompimento com a realidade. A pessoa fica meio paralisada, entra em um estado quase de transe. São quadros transitórios que podem incluir sintomas persecutórios e paranoicos, parecendo muito com um episódio psicótico, como na esquizofrenia”, explica Sassi. “A grande diferença é que, no transtorno borderline, esses episódios não duram muito tempo. Às vezes, persistem por uma ou duas semanas e podem se resolver sozinhos.”
Transtorno nem sempre é um ‘vulcão emocional’
Como destaca Fernanda, o fato de o transtorno borderline ter nove critérios diagnósticos, sendo necessário preencher pelo menos cinco deles para confirmar o quadro, permite mais de 250 combinações possíveis, o que significa que existem muitos perfis diferentes dentro do mesmo transtorno. Alguns pacientes são mais impulsivos. Em outros, predomina uma sensação profunda de vazio, por exemplo.
Essa diversidade ajuda a entender por que a imagem comum do paciente borderline como alguém sempre explosivo e agressivo é, muitas vezes, uma caricatura. “Existem pacientes mais leves, que trabalham, são casados, e lidam principalmente com sintomas existenciais. São pessoas que, em geral, não agridem os outros nem a si mesmas. Essa figura do paciente como um vulcão emocional, uma montanha-russa incontrolável, representa apenas uma pequena parte dos casos.”
Outra confusão comum é a ideia de que o transtorno de personalidade borderline se assemelha ao transtorno narcisista. Embora ambos façam parte do mesmo grupo de transtornos de personalidade, são condições diferentes. “O narcisista tem uma necessidade de ser valorizado, elogiado, reconhecido. Já o borderline costuma estar ‘brigando’ com o medo de ser abandonado. Isso muda completamente a forma como cada um reage às frustrações”, explica Sassi.
Da onde vem o transtorno borderline?
Segundo o especialista, o desenvolvimento do transtorno borderline é resultado da combinação de três grandes fatores: biológicos, psíquicos e sociais. Isso significa que há uma influência genética, mas também um peso importante das experiências de vida e da forma como a pessoa aprendeu a se relacionar com o mundo.
A base da personalidade, conforme explica Sassi, se constrói a partir da união entre temperamento e caráter. O temperamento é herdado. Já o caráter se forma com o tempo, a partir das vivências e relações que vamos construindo ao longo da vida. A personalidade, então, é esse conjunto: o que somos biologicamente e o que fomos aprendendo a ser.
Quando certos traços de personalidade se tornam muito intensos, se afastando do que seria esperado ou comum, e começam a gerar sofrimento, tanto para o próprio indivíduo quanto para quem convive com ele, entramos no campo dos transtornos de personalidade.
“No caso do transtorno borderline, há quase sempre algum tipo de trauma envolvido, especialmente na infância”, diz Sassi. Mariana, por exemplo, conta que cresceu com uma mãe distante, ocupada com o trabalho, e viu o pai se afastar aos poucos, até formar uma nova família. “Foi uma experiência de abandono que, hoje, reconheço ter impacto na forma como me entendo”, afirma.
Além da interação entre fatores biológicos e ambientais, o transtorno também envolve questões emocionais. Como explica Sassi, o desenvolvimento emocional de qualquer pessoa costuma passar por duas etapas fundamentais: primeiro, é preciso ser cuidado por alguém; depois, gradualmente, aprendemos a cuidar de nós mesmos, reconhecendo quem somos e do que precisamos.
“É nesse segundo momento que, muitas vezes, algo falha no borderline. A pessoa não consegue se diferenciar plenamente do outro. Ela precisa que o outro esteja ali, reafirme seu valor, diga que não vai embora. Se o outro se afasta, é como se ela perdesse a própria referência.”
Embora o diagnóstico geralmente aconteça na vida adulta, ele alerta que esse processo pode começar a se desenvolver ainda na infância, a partir da dificuldade de identificar e nomear emoções. “Com as cores, a gente ensina: isso é azul, e isso é amarelo. Mas com as emoções, muitas vezes, ninguém diz: isso que você está sentindo é tristeza, isso é raiva, isso é medo. A criança cresce sem aprender a reconhecer o que sente, sem desenvolver um vocabulário emocional, e isso fragiliza todo o resto.”
Para ele, esse é um ponto chave para a prevenção: inserir a educação emocional desde cedo, inclusive em ambientes como a escola. “Quando a gente trabalha com projetos de vida ou educação socioemocional, estamos ensinando a criança a se conhecer, a entender sua relação com os outros e com o mundo. Isso fortalece a formação do caráter e a construção de vínculos saudáveis. Em vez de pensar só em diagnóstico, a gente pode apostar na prevenção. E isso é muito mais potente.”
Existe cura?
Não existe uma cura definitiva, mas o tratamento pode melhorar a qualidade de vida. “Com psicoterapia, acompanhamento médico e rede de apoio, muitos pacientes conseguem controlar os sintomas”, explica Fernanda.
Nos casos mais leves, a terapia por si só já pode ser suficiente. Mas quando há outros transtornos associados, como depressão, distúrbios alimentares ou uso de substâncias, a medicação pode ser necessária. “Essas comorbidades dificultam o tratamento e precisam ser tratadas em paralelo. O remédio não é para o borderline em si, mas para os quadros que vêm junto.”
De acordo com a especialista, o processo de melhora costuma acontecer em espiral: a pessoa avança, enfrenta recaídas, e depois avança de novo. O mais importante é observar se, com o tempo, as crises estão se tornando menos frequentes, menos intensas e mais curtas. “Se antes o paciente tinha crises toda semana, se trancava no quarto por dias, e agora isso acontece uma vez por mês e dura só algumas horas, já é um avanço.”
Mariana é exemplo de quem viu progressos importantes com o tratamento - mas sem idealizações. “Não é como se tudo estivesse resolvido. Controlar as emoções ainda é difícil, mas hoje já consigo lidar melhor com a instabilidade, aquele sobe e desce de sentimentos que muita gente confunde com bipolaridade.”
Ela também percebe que se tornou menos impulsiva. E, com o diagnóstico, passou a entender melhor o que sente. “Hoje, tenho um recurso que chamo de ‘consultar a realidade’. Como lido com questões ligadas ao medo de abandono, se algo dá errado, já penso que a pessoa não gosta de mim. Então eu paro, respiro e pergunto pra alguém próximo: ‘Será que estou viajando?’.”
Essa prática, diz ela, virou uma espécie de bússola emocional. “Por um lado, você começa a desconfiar mais dos próprios sentimentos. Por outro, aprende a ponderar melhor. E, aos poucos, vai criando uma base mais firme para lidar com eles.”
Fonte: Estadão