Vontade de não fazer nada? Estudo mostra como o ócio faz bem para o cérebro (e fará você render mais no trabalho)


Pesquisadores descobriram que neurônios do córtex visual processam informações mesmo quando se está distraído, juntando-se às evidências que explicam os benefícios do descanso mental

Ciência avança nos benefícios do ócio. — Foto: FreePik

Simplesmente ter momentos sem fazer nada pode parecer desperdício de tempo para alguns, especialmente numa época em que a rotina é cada vez mais regida pela lógica da rapidez e da produtividade. Mas dar um “descanso” ao cérebro pode, na realidade, proporcionar uma série de benefícios, que vão desde a criatividade até uma melhora no desempenho profissional. Para especialistas, as pausas não são um luxo, mas sim uma necessidade para o bom funcionamento cerebral.

Numa das evidências mais recentes sobre o tema, pesquisadores do Instituto Médico Howard Hughes, nos Estados Unidos, descobriram que esses momentos são importantes para a forma como o cérebro aprende. Num experimento com camundongos, publicado na revista científica Nature, eles observaram que, mesmo quando não há tarefas ou objetivos específicos envolvidos, os neurônios do córtex visual estão processando informações.

“Mesmo quando você está distraído, apenas caminhando ou acha que não está fazendo nada de especial ou difícil, seu cérebro provavelmente ainda está trabalhando bastante para memorizar onde você está, organizando o mundo ao seu redor, para que, quando você deixar de estar distraído, quando realmente precisar fazer algo e prestar atenção, esteja pronto para dar o seu melhor”, diz Marius Pachitariu, líder do grupo de pesquisa, em comunicado.

Esse interesse pelos mecanismos e benefícios do tédio intencional ganhou tração a partir do sociólogo italiano Domenico De Masi quando criou, no final dos anos 90, o conceito de “ócio criativo”. Ele defendia a importância do tempo livre como um espaço para reflexão, aprendizado e desenvolvimento pessoal.

— A proposta dele era mudar esse conceito de que o ócio é improdutivo. Para ele, o ócio é importante até mesmo para retornarmos melhor para o trabalho, pensando em recarregar as energias para o momento laboral — diz Matheus Karounis, mestre em Psicologia Clínica e professor da PUC - Rio.

Um trabalho de pesquisadores da Universidade da Califórnia, nos EUA, acompanhou físicos e escritores e revelou que 20% de suas ideias mais significativas aconteciam durante momentos de “divagação mental espontânea e independente de tarefas”.

Outro estudo, da Universidade Estadual de Michigan, nos EUA, descobriu que os cientistas ganhadores do Prêmio Nobel tinham 2,85 vezes mais probabilidade de se envolver em atividades como atuar, pintar, tocar instrumentos musicais ou outros hobbies criativos.

Na Holanda, o conceito “niksen” (não fazer nada) defende a prática de ativamente não realizar tarefas com um propósito específico, enquanto, na Itália, a expressão “il dolce far niente” (a doçura de não fazer nada") faz parte da cultura do país. E a ciência tem encontrado pistas dos motivos pelos quais a prática pode fazer bem para o cérebro.

— O cérebro em repouso não está parado, está processando, reorganizando e simulando realidades possíveis. Diferentes redes neurais interagem com maior robustez sem a pressão de uma tarefa dirigida. O ócio criativo, compreendido como repouso, compartilha o mesmo princípio — diz Julio Peres, psicólogo clínico e doutor em Neurociências pela USP.


Rede cerebral é ativada pelo ócio

Um estudo do Instituto de Tecnologia da Geórgia, nos EUA, mediu os padrões cerebrais de mais de 100 voluntários e observou que as pessoas que relataram “sonhar acordado” com mais frequência obtiveram notas mais altas em testes de capacidade intelectual e aparentavam ter sistemas cerebrais mais eficientes.

"As pessoas tendem a pensar na divagação mental como algo ruim. Você tenta prestar atenção e não consegue. Nossos dados são consistentes com a ideia de que isso nem sempre é verdade. Algumas pessoas têm cérebros mais eficientes", disse Christine Godwin, principal autora do estudo, à época.

Um mecanismo cerebral importante ligado ao ócio foi descoberto em 2001 e tem se tornado interesse crescente dos cientistas: a rede de modo padrão (DNM, da sigla em inglês). De modo diferente da rede de controle executivo, acionada quando a atenção é dirigida a uma tarefa específica, essa rede fica ativa justamente quando uma pessoa não está focada em algo, como uma espécie de “piloto automático” do cérebro.

Trata-se de um conjunto de regiões cerebrais, que inclui o córtex pré-frontal medial, o córtex cingulado posterior e o lobo parietal inferior, que se conectam durante momentos de repouso mental, explica Peres:

— Estudos com neuroimagem em repouso mostram que essa rede favorece a integração emocional, a elaboração de experiências autobiográficas e o surgimento de pensamentos criativos. Ela facilita conexões inesperadas entre memórias e ideias, funcionando como terreno fértil para a criatividade e a reorganização psíquica.

Um desses trabalhos, publicado na revista científica BRAIN, analisou indivíduos enquanto participavam de uma tarefa em que tinham que imaginar novos usos para itens do cotidiano, como para uma xícara. Durante a atividade, a DNM foi a primeira rede a ser ativada e, em seguida, teve a ação sincronizada com outras regiões do cérebro envolvidas em resolução de problemas e tomada de decisões.

Quando os cientistas usaram eletrodos para diminuir a atividade da rede, o desempenho dos participantes na tarefa foi considerado menos criativo. Para os pesquisadores, isso mostrou que a criatividade se origina na DNM. Livia Ciacci, mestre em Neurociência pela Universidade Federal de São João Del Rei (UFSJ), explica como isso é convertido para outras áreas da vida:

— A DMN facilita a associação livre de ideias, permitindo que soluções criativas para problemas complexos surjam de forma espontânea. Grandes mentes da história, como Einstein e Darwin, tinham rotinas que incluíam longos períodos de caminhada e contemplação. Mas o único jeito de deixar ela funcionar é descansando ou fazendo atividades sem pressão, sem buscar um resultado.

Para ela, a ideia de que precisamos estar constantemente ocupados e produtivos é “um dos maiores mitos da nossa sociedade, que vai na contramão do que a neurociência ensina sobre o funcionamento cerebral”. Nesse contexto, o ócio é não apenas positivo, como “uma necessidade biológica para o bem-estar e o bom desempenho cognitivo”, argumenta.

— Evidências recentes revelaram que os ritmos internos do cérebro se ajustam conforme os estados comportamentais. Durante o repouso, eles se alongam, permitindo um estado de consciência mais calmo, reflexivo e restaurador, que favorece a neuroplasticidade. Essa flexibilidade é essencial ao equilíbrio emocional, assim como ao bom funcionamento cognitivo — complementa Peres.


Impacto na saúde mental

Para Maico Costa, coordenador do Centro de Humanização da USP e da pós-graduação em Psicanálise e Saúde do Einstein, o ócio é também o momento “em que nos encontramos com nós mesmos de um jeito muito íntimo, talvez o mais íntimo que possamos ter com nós mesmos”:

— O ócio tem a ver com esvaziamento de excesso. E esse excesso é justamente o que colapsa a mente humana, que chamamos hoje de burnout. Quais os efeitos disso? Sentimento de incapacidade, ansiedade generalizada, angústia intensa, sensação de nunca estar à altura de exigências que vêm do outro. Quando falamos de instaurar o ócio, falamos do oposto. De momentos para que o protagonismo seja nosso, de nossas aspirações, nossos sonhos.

É como pensa também Anna Paula Zanoni, doutoranda em Psicologia Clínica pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), que defende o momento do repouso mental como necessário para organizar e processar todas as novas informações obtidas ao longo do dia:

— O ócio nos proporciona práticas de contemplação, uma outra forma de perceber a experiência cotidiana que nos coloca num estado de abertura e receptividade vivências além daquelas regidas pelas lógicas do trabalho, da aceleração, da otimização, da eficácia do tempo.

Mas exercer o ócio pode não ser tão fácil quanto se imagina. Num experimento publicado na revista Science, participantes tiveram de escolher entre ficar de 6 a 15 minutos sozinhos, apenas com seus pensamentos, ou levar choques elétricos leves. 67% dos homens e 25% das mulheres preferiram os choques.

— Às vezes, as pessoas não têm o que fazer, mas buscam algo justamente pela culpa de estar em ócio. Porque a produtividade tóxica nos leva a querer ser produtivo até mesmo nos momentos de lazer. É uma lógica de fazer o tempo inteiro, não podemos simplesmente ser. Mas nosso cérebro funciona nessa dualidade entre produtividade e descanso — afirma a psicóloga Anne Crunfli, especialista em Transtornos de Ansiedade pela USP.


Fonte: O Globo



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