'Casas de Fadas' guardam segredos de 5 mil anos na Itália

O Túmulo do Capo no sítio de Sant'Andrea Priu — Foto: Divulgação/Sérgio Melis/Secretaria Regional do Ministério da Cultura da Sardenha

No coração do Mediterrâneo, a ilha é conhecida como destino de verão privilegiado graças às águas cristalinas, praias de areia branca, luxo e glamour — como na cobiçada Costa Esmeralda.

Mas a Sardenha também abriga um vasto patrimônio arqueológico que une mistério, arte e pré-história. É o caso das chamadas “Casas de Fadas” (Domus de Janas, em sardo; Case delle Fate, em italiano), declaradas Patrimônio Mundial pela Unesco em Paris, em meados de julho.

Não se trata de alguns poucos exemplos, mas de mais de 3.500 estruturas espalhadas pela paisagem da ilha. Segundo lendas anteriores à própria escrita, fadas ou bruxas habitavam esses sítios megalíticos subterrâneos, ocultos na natureza. Com o tempo, prevaleceu a crença nas fadas como benevolentes protetoras, que teciam fios de ouro e zelavam pelos sonhos das crianças — cenário digno de produções cinematográficas de fantasia.

Esculpidos nas pedras, os túmulos reproduzem aspectos das casas dos falecidos — Foto: Divulgação/Sérgio Melis/Secretaria Regional do Ministério da Cultura da Sardenha

Na realidade, são túmulos pré-históricos esculpidos na rocha e decorados internamente com fins rituais, recriando aspectos da vida do falecido. Testemunham o culto funerário de comunidades que viveram há cerca de 5 mil anos e deixaram esta impressionante manifestação arquitetônica e espiritual sobre a vida e a morte.

Escavados entre o Paleolítico e a Idade do Bronze, esses nichos guardavam os restos mortais de entes queridos, junto a estatuetas como oferendas e cenários simbólicos para a jornada ao além. Alguns túmulos isolam-se em rochas cercadas pela vegetação; outros se agrupam em panteões monumentais sobre cumes ou formações erodidas.

Vestígios arquitetônicos sugerem narrativas carregadas de espiritualidade. Cerca de 200 domus preservam elementos como entradas, corredores, galerias e celas, além de portas falsas, tetos em palco e colunas esculpidas. Motivos decorativos representam animais — em especial cabeças e chifres de touros ou bois — e figuras geométricas.

A casa das fadas de S'Incantu — Foto: Divulgação/Centro de Estudos de Identidade e Memória (CESIM)

Entre os mausoléus mais importantes está Sant’Andrea Priu, em Bonorva, aberto sobre um afloramento rochoso de 180 metros de comprimento e 10 metros de altura, formado por lava vulcânica. Entre as 20 domus ali existentes, destaca-se a Tumba do Capo, de 250 m² e 18 cômodos interligados, com estrutura que remete às casas da época. Há indícios de reutilização no período romano e, mais tarde, bizantino. Chegou a funcionar como igreja dedicada a Sant’Andrea, com paredes rebocadas e pinturas do Novo Testamento.

Mais a oeste, na necrópole de Monte Siseri, em Putifigari, a cerca de 850 metros de altitude, está S’Incantu (“o encanto”), um exemplar notável da arte neolítica, com baixo-relevos e teto que simula madeira em duas águas, apoiado por colunas falsas e paredes decoradas com chifres de touro.

Outro conjunto de destaque é Montessu, no sudoeste da ilha, onde 35 domus formam um “anfiteatro” datado do terceiro milênio a.C. Em Alghero, Anghelu Ruju, descoberto em 1903, exibe dezenas de túmulos dispostos em duas áreas, a menos de dez quilômetros do mar.

“As 17 necrópoles reconhecidas pela Unesco estão entre as mais representativas da Sardenha, com maior concentração no noroeste. Cerca de 300 dessas hipogeias funerárias se destacam pelos motivos artísticos pintados, gravados ou esculpidos, de valor universal evidente”, afirma o professor Giuseppa Tanda, diretor científico do Centro de Estudos de Identidade e Memória (Cesim). Desde 2018, o centro lidera o processo de candidatura, em parceria com a região e municípios, encabeçados por Alghero.

A domus de janas, escondida na natureza da Sardenha — Foto: Divulgação/Centro de Estudos de Identidade e Memória (CESIM)

Segundo o especialista, a declaração “é uma oportunidade extraordinária para a Sardenha pré-histórica. A Domus de Janas entra oficialmente no coração da cultura mundial. Não somos mais uma ilha periférica, mas o centro de uma civilização antiga que ainda tem muito a dizer. É uma mensagem de orgulho e esperança para as novas gerações”.

Os onipresentes palácios nurágicos

A Itália lidera a lista de países com mais sítios reconhecidos pela Unesco — agora 61. A Sardenha já contava com outro título: o complexo Su Nuraxi di Barumini, exemplo máximo dos nuragos, impressionantes castelos e torres cônicas de pedra, sem paralelo no mundo.

A cerca de 60 km ao norte de Cagliari, capital da ilha, e a 240 metros de altitude, Su Nuraxi domina a planície. De longe, lembra uma fortaleza medieval com torre central; de perto, revela estrutura possivelmente defensiva, construída com blocos de basalto trazidos de pedreiras próximas. Sua estratificação revela ocupações entre o século XVI a.C. e o século VII d.C.

O complexo inclui torre central de 18 metros de altura, quatro torres de canto ligadas por bastiões e um circuito irregular com cerca de cinquenta poços, cisternas e cabanas. Uma delas, a Cabana de Reunião, preserva bancos, nichos e vestígios de objetos e armas, sugerindo encontros comunitários.

Mas não é caso isolado: a ilha abriga cerca de 7 mil nuragos, construídos pedra sobre pedra, sem fundações, chegando a 20 metros de altura. A função original é incerta, variando entre usos religiosos, militares ou simbólicos. Por isso, a comissão Sardenha versus Unesco, liderada por Pierpaolo Vargiu, busca estender a certificação a todo o conjunto, considerado patrimônio histórico e motor do turismo local.

Fonte: O Globo


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