Corte internacional julga Brasil pela morte de 96 bebês em clínica particular

A UTI neonatal da Clínica Pediátrica da Região dos Lagos, em Cabo Frio, onde ocorreram 96 mortes de bebês: acusação de negligência — Foto: Marizilda Cruppe/16-4-1997

O Estado brasileiro será julgado nesta sexta-feira, de maneira inédita, na Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) pela morte de 96 bebês entre 1996 e 1997, na Clínica Pediátrica da Região dos Lagos (Clipel), em Cabo Frio, uma instituição privada que recebia repasses do SUS naquele período. As crianças faleceram devido a infecções hospitalares causadas por práticas sanitárias inadequadas. Esse é o primeiro julgamento internacional no qual o Brasil pode ser responsabilizado por violações sistemáticas ao direito à saúde de recém-nascidos e suas famílias. As vítimas, que apresentaram a denúncia ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos em 2000.

A reportagem teve acesso à defesa do grupo "Mães de Cabo Frio" e falou com algumas das oito famílias que vão depor durante o julgamento, que tem início previsto para começar às 8h30, na Suprema Corte do Paraguai. Alguns depoimentos serão entregues por escrito.

De acordo com a defesa das mães, a ONG Justiça Global, o caso destaca não somente as mortes, mas "os impactos devastadores sobre as famílias ao longo de todos esses anos, exigindo medidas de reparação e o fortalecimento das políticas de saúde materna e neonatal".

— Este é um caso extremamente emblemático, não apenas porque se trata da morte de dezenas de recém-nascidos, mas porque desnuda falhas de fiscalização e responsabilização da vigilância infecto-sanitárias, sobretudo com relação a prestadores de serviços privados conveniados ao SUS — afirma Daniela Fichino, advogada das famílias.

A reportagem apurou que a Corte deve reconhecer a responsabilidade do Brasil e assim determinar reparações concretas.

O caso foi revelado pelo GLOBO em abril de 1997, após parentes das vítimas denunciarem as mortes ao Ministério Público do Rio (MPRJ). — Foto: Reprodução


— Esperamos que esta audiência, e que a sentença da Corte Interamericana, possam ser marcos para o fortalecimento do Sistema Único de Saúde, que é um patrimônio do povo brasileiro. Esperamos também que essas mães e pais que lideraram corajosamente toda a investigação deste caso possam, enfim, obter uma resposta sobre a imensa dor que atravessou suas vidas a partir da omissão das agências responsáveis pelo controle hospitalar — acrescenta.

As mães e os familiares irão vestidos com roupas brancas para chamar a atenção dos seis juízes que vão analisar o caso.

— A gente tem um lema desde o começo com as outras mães. Nosso logotipo que criamos a partir de nossa associação são várias mãos que criam quase que um círculo onde uma mão segura a outra. Então nosso lema é "estamos juntas, ninguém solta a mão de ninguém" — afirma ao GLOBO uma das mães que vai apresentar o seu depoimento por escrito em 22 páginas.

— Vamos de peito aberto, vestidas de branco. O tempo passou, já se foram quase 30 anos, mas o desejo de justiça não desapareceu, não enfraqueceu, esse é o nosso espírito, de estar tão juntas que nada pode nos bloquear — afirma.

O caso

O caso foi revelado pelo GLOBO em abril de 1997, após parentes das vítimas denunciarem as mortes ao Ministério Público do Rio (MPRJ). Até hoje, ninguém foi responsabilizado. A CIDH havia recomendado ao Brasil, no entanto, uma “reparação integral” aos familiares, com indenização em dinheiro, assistência psicológica e até a abertura de uma nova investigação.

Em relatório obtido pelo jornal, a CIDH afirma que, embora a clínica não seja uma instituição pública, o Estado falhou em não “adotar medidas concretas” para apurar as denúncias. “A ausência de verdade e justiça ocasionou sofrimento aos familiares das vítimas”, destaca o documento, que também questiona o fato de as autoridades responsáveis não cumprirem o dever de fiscalizar as condições sanitárias da clínica, que continuou recebendo pacientes e ainda está em funcionamento.

Segundo as denúncias, não se sabe ao certo quantos bebês nasceram saudáveis, mas houve muitas internações desnecessárias. Até bebês sadios teriam sido contaminados por bactérias típicas de infecção hospitalar, principalmente a Klebsiella pneumoniae. Além disso, as mães tiveram, em sua maioria, partos normais, não sépticos. Ou seja, não se sabe de nenhuma que tenha apresentado sintomas de infecção antes ou depois do parto.

O Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), por sua vez, diz que, em caso de uma condenação, o Brasil terá a obrigação de cumpri-la. “Se houver condenação, o Estado brasileiro deve cumprir as determinações da Corte, com articulação entre os órgãos competentes para garantir a reparação”. De acordo com a pasta, essas sentenças têm “impacto direto na política interna brasileira”.

A Clipel afirma que o pedido de condenação do Estado brasileiro não diz respeito aos sócios da clínica. “Discordamos da afirmação no sentido de que houve negligência médica de funcionários da Clipel, posto que todos os médicos injustamente acusados foram absolvidos pela Justiça do Estado do Rio, tanto na primeira quanto na segunda instância, e em decisão unânime. Não é justo, e fere o bom senso e a razão, o fato de, passados quase 30 anos, vir uma Comissão de Direitos Humanos divulgar uma condenação esdrúxula e arbitrária, que sequer deu direito de defesa aos médicos da Clipel, que sequer os ouviu acerca dos fatos”, diz em nota.

‘Mortes anormais’

As primeiras informações sobre a morte dos bebês, divulgadas em abril de 1997, denunciavam a morte de cerca de 80 bebês em um período de nove meses. Conforme reportagem do GLOBO à época, o diretor e sócio da clínica, doutor Luiz Cavalcante Lopes, argumentou que tais mortes representavam “apenas” 30% do total de internações.

No entanto, a taxa de mortalidade seria três vezes maior que o limite considerado aceitável. Para efeito de comparação, o Instituto Fernandes Figueira, vinculado à Fundação Oswaldo Cruz (IFF/Fiocruz) e referência em partos de alto risco, tinha uma taxa de óbitos de 1% do total de internações, exceto em casos de malformações congênitas.

Segundo denúncias dos familiares, o cenário foi causado por negligência, superlotação e falta de higiene. Alguns médicos e enfermeiros compartilhavam jalecos, não lavavam as mãos durante os contatos com os bebês e não usavam máscaras, conforme relatos de pacientes. Fador Sampaio, promotor de Cabo Frio e responsável pela abertura do inquérito, afirmou na época que “o número de mortes era estarrecedor”.

Apesar disso, a Secretaria de Saúde da cidade constatou, em uma rápida perícia, que a clínica cumpria “todas as normas de higiene”. Após os laudos que isentaram a clínica de responsabilidade, a então deputada estadual e médica sanitarista Lúcia Souto (PPS) solicitou, em julho de 1997, uma perícia paralela junto ao IFF/Fiocruz. A Vigilância Sanitária estadual contestou a solicitação, alegando que novas ações não trariam um parecer diferente.

Em agosto de 1997, a nova análise concluiu que o número de mortes era “totalmente anormal”. O documento foi baseado em resultados de exames de sangue, resumos das internações e laudos das vistorias e atestou dezenas de mortes por infecção generalizada e pela bactéria Klebsiella pneumoniae — presente em mais de 50 exames. Em dezembro de 1996, por exemplo, dez dos 11 óbitos foram por infecção generalizada.

Acusados absolvidos

A perícia foi anexada ao inquérito policial da época, e, um mês depois, Lopes e outros sete médicos foram indiciados por homicídio culposo. O Ministério Público só apresentou sua denúncia dois anos depois, em dezembro de 1999. Em fevereiro de 2003, os oito médicos foram absolvidos. Houve recurso e, em março de 2005, o Tribunal de Justiça manteve a absolvição dos acusados.

Ainda em 1999, uma reportagem do GLOBO mostrou que Lúcia Souto — hoje médica sanitarista e pesquisadora da Fiocruz — atribuiu as dificuldades e a lentidão na apuração do caso ao corporativismo entre os médicos e ao “prestígio social e político dos profissionais envolvidos” em Cabo Frio.

A primeira denúncia chegou à CIDH em 2000. A partir daí, o órgão passou a apresentar suas observações sobre o caso, mantendo a comunicação entre o Estado brasileiro e as famílias.

Diversas denúncias

Naquele fim da década de 1990, as mortes em Cabo Frio não foram as únicas no Rio. Ainda em 1997, o então secretário estadual de Saúde, Ivanir de Mello, determinou que a Vigilância Sanitária visitasse todas as 60 UTIs neonatais do Rio de Janeiro. No fim dos anos 1990, O GLOBO mostrou diversas denúncias de superlotação em unidades como essas no estado, incluindo na capital. Em uma das inspeções na Clipel, inclusive, a Vigilância ordenou a retirada de cinco incubadoras que excediam a capacidade oficial da clínica.

Em mais um caso, em dezembro de 1999, o então ministro da Saúde, José Serra, exonerou o diretor do então Hospital Geral de Bonsucesso (HGB) por não ter acionado as autoridades após a morte de sete bebês por infecção hospitalar. Na mesma época, cinco recém-nascidos morreram em menos de 72 horas no Hospital Maternidade Oswaldo Nazareth, que ficava na Praça Quinze.

Fonte: O Globo


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