Em alguns casos, a tendência é de que novas funções sejam criadas ou adaptadas, outras devem ser extintas pela automatização
Série do 'Estadão' projeta como advogados e médicos vão se readaptar à nova forma de trabalhar com a IA. Crédito: Jayanne Rodrigues | Estadão
No hospital Albert Einstein, enquanto o paciente é atendido em uma consulta clínica, uma ferramenta de inteligência artificial transcreve a conversa entre o profissional e o paciente. O modelo ainda está em fase de testes pela instituição e foi incorporado para economizar o tempo em que o médico gastava com tarefas administrativas. “O médico vai conseguir se dedicar ao que faz de melhor que é cuidar”, afirma Rodrigo Demarch, diretor de inovação do Einstein.
Experiências como essa têm se tornado cada vez mais comum no setor de saúde e em outras áreas tradicionais, como o Direito. Nos últimos anos, áreas consideradas mais convencionais ampliaram a implementação do uso da IA para otimizar a rotina de trabalho e ter mais precisão nos resultados a partir da automatização de tarefas.
Na última reportagem da série O trabalho na era da IA, publicada desde segunda, 20, no Estadão, entenda como a tecnologia está mudando o dia a dia de profissionais da saúde e do mercado jurídico. Na advocacia, o maior temor é a substituição de advogados juniores.
No ambiente clínico, a estimativa é de que a tecnologia auxilie o médico a tomar decisões com maior velocidade e precisão. “A capacidade da IA de avaliar resultados é incomparável com a velocidade humana. Isso pode acontecer em um prazo de 12 meses ou 18 meses”, aponta Alexandre Tibechrani, diretor da divisão Tech da LHH, consultoria de transição de carreira e recrutamento.
No Einstein, a produção de dados começou há mais de 10 anos com o objetivo de acompanhar uma tendência do setor de saúde. Desde então, o hospital já produziu mais de 500 algoritmos, dos quais 120 estão em operação, desde apoio em resultados clínicos à eficiência operacional nos setores administrativos e financeiros da empresa.

Rodrigo Demarch, diretor de inovação do Albert Einstein, está na linha da frente da implementação da IA no corpo clínico Foto: Felipe Rau/Estadão
No dia a dia, as ferramentas ajudam a antecipar internações, acompanhar a evolução do quadro do paciente e identificar detalhes quase imperceptíveis em imagens. Por exemplo, um paciente chega à emergência às 3h da manhã com suspeita de fratura no pé. O radiologista solicita o raio-X e quem faz a primeira triagem é a IA, o médico entra para fazer a revisão final, exemplifica Demarch. “Às vezes, o olho humano pode passar batido em fraturas pequenas”, diz.
Segundo o diretor de inovação do Einstein, não haverá redução no quadro de funcionários do núcleo de saúde, ainda que a máquina execute algumas demandas. “A IA não vai substituir o profissional de saúde. Ela não é o fim, é o meio. A mudança vai ser em quem sabe usar a IA na rotina de trabalho e quem não sabe”, avalia. Ele aposta que aqueles mais atualizados devem se diferenciar dos demais no mercado.
Já no mercado jurídico o cenário é um pouco diferente. O impacto da IA no mercado jurídico deve reverberar principalmente para cargos de entrada, como advogados juniores e estagiários. A IA já lê jurisprudência ou analisa grande volume de processos com maior rapidez e com um custo mais baixo.
“No Direito, não vamos ter uma redução no número de empregos, mas uma mudança nas funções. Os empregos vão sumir? Sim e não. Vamos ter novos tipos de cargos”, estima Ivar Hartmann, professor associado do Insper.
IA muda rotina e funções em escritório de advocacia
Um exemplo dessas novas funções pode ser visto no escritório de advocacia KLA. A empresa decidiu incorporar recursos de IA há dois anos para reduzir o tempo gasto na captação da publicação de processos em diários oficiais e outras atividades que incluem um volume maior de informações.
O trabalho que antes levava quatro dias passou a ser feito em pouco mais de três horas por robôs desenvolvidos internamente. Eles leem as publicações, categorizam, indicam quem é o advogado responsável e lançam no software de controle de prazos.
A funcionária responsável pela tarefa não perdeu o emprego, mas precisou mudar as funções que desempenhava. Agora checa e analisa o material gerado pelas máquinas. “A pessoa vai ter tempo para desenvolver uma visão mais estratégica. Não vamos substituir os advogados, pelo menos não no nível de tecnologia que temos hoje”, afirma Felipe Omori, sócio de Direito Tributário do KLA Advogados e integrante do grupo de inovação, que vem desenvolvendo ações no escritório.

Felipe Omori integra o grupo de inovação do escritório de advocacia KLA Foto: Felipe Rau/Estadão
Ele acrescenta que o objetivo é desafogar a burocracia e liberar tempo para atividades de maior valor. Além do robô de captura de publicações, o escritório desenvolve automações para arquivamento de documentos e elaboração de propostas comerciais. Desde o início dos testes, o KLA avaliou mais de 25 ferramentas. Com o início do treinamento para os quase 200 funcionários, a ideia é ensinar o uso de prompts e de ferramentas voltadas à criação de automações e robôs.
A adoção da ferramenta em diversos tribunais brasileiros para tomada de decisão, também influenciou o escritório a estruturar peças jurídicas com apoio da IA para sistemas automatizados. Por enquanto, o investimento em IA ainda não trouxe redução de custos diretos, afirma Omori, que não abriu o valor investido. Porém, afirma que os ganhos de produtividade são perceptíveis.
Apesar do entusiasmo, Omori pontua que a política da empresa leva em consideração que o trabalho intelectual do advogado não é delegável à IA. “Nenhum e-mail ou parecer sai daqui feito só por IA. É uma ferramenta de suporte, não de entrega final”, afirma. Felipe acredita que o conhecimento em IA poderá se tornar um diferencial em contratações, mas ainda não é um requisito no escritório.
O novo perfil da carreira em áreas tradicionais
Em profissões tradicionais, o desafio deixa de ser competir com a IA e passa a ser como aprender a trabalhar da melhor forma com ela. Uma das novas demandas do profissional júnior do mercado jurídico será a tomada de decisão sobre o uso de softwares jurídicos e ao sigilo de dados, estima Hartmann, professor do Insper, que ensina programação para estudantes da área há mais de dez anos.
No médio prazo, os cargos de entrada tendem a diminuir se a função for apenas executar tarefas simples. “Vamos continuar tendo contratação de estagiários, mas com novas demandas. Daqui a dez anos, as funções de base no Direito devem deixar de existir como conhecemos hoje”, projeta Hartmann.

Na foto, Ivar Hartmann, professor associado do Insper Foto: Werther Santana/Estadão
Em contrapartida, novas especializações devem surgir, como a de engenheiros de prompt. Essa habilidade, explica o professor, será tão necessária quanto conhecer o Código Penal ou o Código Civil. “Nós formamos o estudante de graduação para não ficar obsoleto em cinco anos”, diz.
O advogado do futuro deve ter versatilidade, compreender a tecnologia e saber desenhar novas soluções de IA para o Direito. No Insper, por exemplo, os alunos da graduação tem acesso a aulas de programação, estatísticas, ciência de dados e atividades práticas para desenvolver software.
Aspectos comportamentais, como curiosidade e comprometimento, entram na lista das novas habilidades, complementa Rodrigo Dib, superintendente Institucional e de Inovação do CIEE. “Tudo que é técnico é mais fácil de ser feito pela IA”, sugere Dib, ao confirmar que o foco será no intelecto. “Não é mais um jovem que irá ao escritório para tirar xerox para o chefe.”
Na medida que tarefas mais simples são automatizadas, cresce a necessidade de profissionais capazes de tomar decisões nas profissões tradicionais, seja no Direito ou na Medicina.
Para Alexandre Tibechrani, hoje a tecnologia devolve informações, cabe ao profissional interpretar, questionar e adaptar esses resultados ao contexto para conseguir se destacar onde atua. “O grande diferencial é saber aportar valor. A IA pode gerar um texto perfeito em segundos, mas o olhar humano é o que dá personalidade ao que é entregue”, resume.
Fonte: Estadão


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