Casa de Sal: mãe e filha transformam lixo em moradia e arte e constroem lar com 8 mil garrafas



Feito com material recolhido das ruas, espaço é um manifesto contra o racismo ambiental e um símbolo de resistência


Mãe e filha em Pernambuco construíram a Casa de Sal, um lar sustentável feito com mais de 8 mil garrafas recicladas, como símbolo de resistência ao racismo ambiental e exemplo de ecologia e moradia popular.

A menos de 100 metros do mar, sob o vento salgado em Itamaracá (Pernambuco), uma casa brilha. O reflexo do sol atravessa as paredes, feitas de garrafas de vidro recolhidas nas esquinas da Praia do Sossego. É a Casa de Sal, uma moradia construída por duas mulheres --Edna e Maria Gabrielly Dantas-- que transformaram resíduo em abrigo, e necessidade em arte.

"Começamos a construção em maio de 2020, em plena pandemia", lembra Edna. "Demorou quase dois anos. Um ano e seis meses, um ano e oito meses, mais ou menos". O primeiro cômodo, de 17 metros quadrados, foi o ponto de partida de um sonho que cresceu entre o improviso e a persistência. "Tudo que era a nossa casa era esse espaço", completa Gabrielly.

A casa hoje soma 70 metros quadrados e ocupa um terreno que beira o mangue. Sem engenheiros ou arquitetos, mãe e filha desenvolveram o projeto a partir de pesquisas próprias e mutirões comunitários.

"Surgiu pela necessidade de moradia, mas também pela preocupação com o racismo ambiental", explica Edna usando o termo que designa a desigualdade dos impactos ambientais, vitimando populações historicamente exploradas. A filha complementa: "É uma reivindicação por moradia e ecologia popular. É uma mensagem: aquilo que você bebe e, no final do dia, joga em qualquer esquina pode ter milhares de outras possibilidades."

A história da Casa de Sal é também a história de duas mulheres que decidiram não esperar. Antes da obra, elas viviam de aluguel e mantinham um brechó --o Cabrochas. Com a pandemia, as vendas cessaram.
"A renda era o auxílio emergencial e uma grana que a gente tinha feito no carnaval com o brechó", lembra Gabrielly. "Foi sistema de guerrilha".
A ideia nasceu da observação cotidiana. O vidro, barato e pesado demais para interessar aos catadores, virou matéria-prima de uma arquitetura afetiva. Gaby conta que a ilha de Itamaracá costuma receber veranistas --pessoas que frequentam a ilha apenas no verão. Festejam até tarde da noite e, quando o sol reaparece, é possível encontrar centenas de garrafas pelas ruas.

"Depois de seis meses morando aqui na Ilha de Itamaracá, eu comecei a me sentir incomodada de passar perto desses terrenos baldios, beira-mar, nos mangues. Eram cheios de lixo, abandonados", conta Edna. "Aí eu pensei: 'E se a gente construísse a nossa casa de garrafa de vidro?' Ela falou: 'Oxe mãe, bora'."

As duas lavavam cada garrafa manualmente. "Tinha uma caixa d’água e ia depositando de 500 em 500", conta Gabrielly. "Daí deixava de molho de um dia para o outro e, no outro dia, passava uma espátula, o rótulo saía", completou Edna. O esforço foi tanto que ambas emagreceram. "Eu emagreci 10 kg e ela 7 kg", recorda Edna.

Mais de 8 mil garrafas foram utilizadas nas paredes e fundações da casa. "Talvez, se fosse com as garrafas deitadas, a gente já teria passado das 80 mil", diz Gabrielly. Com as garrafas na vertical, foi possível produzir o efeito de luz e economizar material. Com a inovação, o metro quadrado, que custa em média R$ 1,8 mil na região, abaixou para R$ 1,3 mil.

Além do vidro, a Casa de Sal leva madeiras recicladas e um telhado reaproveitado. Há uma fossa biodegradável e planos de instalar placas solares e captação de água da chuva. O plano é colocar o projeto no mapa como opção de moradia sustentável, podendo ser replicado principalmente em comunidades que sofrem com o racismo ambiental e com a falta de moradia.


Inspiração local

Construção da Casa de Sal é constante, se adequando às necessidades da família
Foto: Arquivo pessoal

Mas nem tudo foi luz. Em 2022, uma chuva forte arrancou parte do telhado. "Foi um momento bem triste, mas não ao ponto de desistir", lembra Edna. "A gente foi muito abraçada". A dupla contou com ajuda da comunidade, que cada vez mais engajou com o projeto.

"Na época, a gente fez uma vaquinha e conseguiu recuperar", relembra Gabrielly.

Hoje, a Casa de Sal é mais do que um lar: é ateliê e pousada. "Tem um quarto no Airbnb também, pra fazer essa vivência", diz Gabrielly. "Custa R$ 166 a diária". Além da própria estrutura sustentável, a atividade das moradoras também reflete o propósito.

Desde 2014, mãe e filha tocam o projeto "Cabrochas", de sustentabilidade têxtil. E mais recentemente criaram o "Moda Sustentável do Sossego", que une jovens e mestras artesãs locais. "É um projeto que une as tecnologias manuais ancestrais do território, como a cestaria, o crochê, o fuxico, e o reaproveitamento de materiais", explica Gabrielly. "A gente faz cestaria com fio de internet, por exemplo".

Quando o sol se põe sobre Itamaracá, a Casa de Sal se transforma. O interior se ilumina em tons verdes e dourados.
"Às vezes, eu tenho que parar e olhar e falar: 'Menina, que é isso, hein? Casa de garrafa!' Que loucura!", ri Gabrielly. "Ainda bem, às vezes tem que beliscar".
Edna, emocionada, resume: "Eu me sinto assim: coloquei no mundo um grande projeto."

Fonte: Terra




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