Trombectomia: como esse avanço pode mudar o tratamento do AVC no SUS

 


Como nem só de covid-19 padecem os brasileiros, hoje trago uma boa notícia sobre acidente vascular cerebral (AVC). Antes de tudo, um pouco de contexto.

O Brasil registra cerca de 400 mil casos de AVC por ano. Eles matam 100 mil pessoas e deixam milhares de outras com sequelas.

O prejuízo social é evidente. Entre os cidadãos que não recebem tratamento, 70% não conseguem voltar ao trabalho e 50% ficam dependentes de outras pessoas para realizar atividades diárias.

Se o AVC mata ou incapacita tanta gente todos os anos, os sistemas de saúde anseiam por tratamentos capazes de evitar mortes, reduzir sequelas e melhorar a qualidade de vida, sem ter um custo proibitivo para os cofres públicos.

Algo raro no atual andar da carruagem da indústria. Muitas das novas drogas e dispositivos que os fabricantes tentam vender ao Ministério da Saúde apresentam benefício discreto e preços extravagantes.

Produtos assim não costumam convencer a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec), o órgão técnico responsável por avaliar se o Ministério da Saúde deve ou não incluir novos itens na lista dos medicamentos e procedimentos oferecidos na rede pública.


Como funciona

De vez em quando, porém, surge uma boa exceção à regra. É o caso da trombectomia, um avanço que pode mudar o tratamento das formas graves de AVC isquêmico no SUS. Em 30% das ocorrências, o paciente tem um grande vaso cerebral obstruído.

Em hospitais que dispõem de sala de hemodinâmica e angiógrafo (o equipamento para fazer cateterismo), anestesista e equipe treinada no tratamento e na reabilitação, a trombectomia pode ser realizada em até oito horas após o início dos sintomas.

Um cateter é introduzido na artéria femoral (da perna) ou radial (do braço) e segue pela circulação até alcançar o vaso cerebral entupido. Há duas possibilidades de eliminar a obstrução:

O médico pode abrir um stent (pequeno tubo metálico expansível) no local e esperar alguns minutos até que o coágulo grude na malha do dispositivo. Quando isso ocorre, o profissional percorre o caminho inverso e retira o stent aberto, trazendo com ele o coágulo inteiro. Outra opção é retirá-lo por sucção.

"Alguns pacientes saem da mesa de hemodinâmica com a fala recuperada ou mexendo o lado do corpo que estava paralisado. É impressionante", diz a neurologista Sheila Martins, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e presidente eleita da Organização Mundial de AVC.

Não é o que acontece com a maioria. Mesmo com a trombectomia, grande parte dos pacientes vai precisar de reabilitação. "Os que chegam mais tardiamente (com seis ou sete horas depois do início dos sintomas) costumam ficar com alguma sequela e vão exigir outros cuidados", afirma.

Benefícios e dificuldades

Desde 2015, diferentes estudos internacionais provaram que a trombectomia reduz a mortalidade e as sequelas nos casos mais graves de AVC isquêmico, mas nem tudo o que funciona nos países ricos serve para o Brasil.

Aqui os pacientes vivem em situação vulnerável, sofrem AVC mais cedo e poucos hospitais têm a estrutura necessária para realizar o procedimento. Para saber se a trombectomia seria uma boa opção na realidade brasileira, o Ministério da Saúde decidiu financiar um estudo nacional.

Nos últimos dois anos, o ensaio clínico realizado com 221 pacientes do SUS em 12 hospitais de diferentes regiões do país comprovou que a trombectomia diminui a mortalidade e as sequelas também no Brasil.

A professora gaúcha, uma reconhecida batalhadora pela melhoria das condições de atenção ao AVC no Brasil, coordenou o trabalho. "O estudo foi altamente positivo. Além de aumentar o grupo de pacientes que conquistam mais independência, o tratamento reduziu de 46% para 30% a parcela dos que ficam em estado vegetativo", diz Sheila.

Primeiro a demonstrar a aplicabilidade da trombectomia em um país em desenvolvimento, o trabalho foi publicado no The New England Journal of Medicine em junho e alcançou grande repercussão.

Mas a batalha pela inclusão do tratamento no SUS ainda não estava ganha.

Dinheiro bem investido

Os pesquisadores realizaram também um estudo de custo-efetividade para demonstrar que os benefícios do tratamento superam o investimento necessário para adotá-lo no SUS.

Segundo eles, o custo total da trombectomia seria de cerca de R$ 45 mil (por volta de R$ 16 mil a mais do que o tratamento conservador).

Era a análise que faltava para conquistar a apreciação positiva da Conitec. Na reunião de avaliação realizada no início de novembro, os técnicos não só recomendaram a incorporação do procedimento na rede pública, como elogiaram o fato incomum de que a demanda não tenha partido da indústria — e sim de uma rede organizada de investigadores, com financiamento do Ministério da Saúde.

O próximo passo será a realização de uma consulta pública. Os especialistas interessados em opinar e a população podem sugerir como deve ser feita a adoção do tratamento no SUS. Em seguida, o processo é encaminhado para a área responsável pelo orçamento do Ministério da Saúde.

"Parece que agora o tratamento vai realmente ficar disponível", diz Sheila. Os pesquisadores sugerem que, em uma primeira fase, ele seja adotado em 20 hospitais públicos ou que prestam serviço ao SUS e têm condições de oferecer a trombectomia com expertise e logística organizada. A maioria está localizada nas regiões sul e sudeste.

"Visitamos todos os hospitais que participaram do estudo e fizemos uma reestruturação da assistência ao AVC no Brasil", diz Sheila. "Aos poucos, podemos fazer a avaliação de outros com o programa de certificação que estamos lançando na América Latina pela Organização Mundial da Saúde", afirma.

Quem fabrica

Várias empresas fabricam os dispositivos necessários para a realização da trombectomia. Não se sabe qual marca será fornecida no SUS. Os pesquisadores solicitaram a adoção do procedimento, sem especificar marcas. "É ótimo que existam concorrentes porque isso aumenta o poder de negociação do Ministério da Saúde e a chance do tratamento passar a ser oferecido rapidamente no SUS", diz Sheila.

Apesar dos avanços tecnológicos, o melhor recurso contra o AVC continua sendo a prevenção. O controle de dez fatores reduz em 80% o risco de AVC.

Os dois principais são a hipertensão e o sedentarismo. Além de melhorar a circulação, a atividade física ajuda a reduzir a pressão arterial, o peso e os níveis de colesterol. Ela tem um efeito global sobre os outros fatores de risco e está ao alcance de todos. Enquanto as discussões sobre incorporação de novos produtos no SUS prosseguem em Brasília, mexa-se enquanto a vida permite.


Viva Bem
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