Após 36 anos, mulher descobre que filha foi trocada

Maria Regina com as filhas Thaísa (à esquerda) e Tati, trocadas na maternidade (Foto: Arquivo Pessoal)

“Sou a oitava dos nove filhos de uma lavadeira e um cortador de cana. Sempre fomos muito pobres. Na minha casa somente os homens podiam estudar, as meninas só aprendiam a fazer os serviços de casa. Aos 12 anos comecei a trabalhar como empregada doméstica e aos 14 deixei minha cidade, Sertãozinho, no interior de São Paulo, para cuidar de crianças em Ribeirão Preto.

Cinco anos depois, quando meu irmão morreu afogado, voltei à minha cidade natal para trabalhar em outra casa de família. Lá, no trabalho, engravidei da minha primeira filha, Thaisa. Foi uma concepção traumática. Não gosto muito de falar sobre o assunto, que ainda me causa muitos gatilhos. Descobri a gestação com quase seis meses. Fiquei desesperada. Continuei trabalhando nessa casa, por não ter para onde ir. Fui muito julgada pela minha família, que não tinha ideia do trauma que eu havia passado, eu não contei para ninguém.

No dia 30 de novembro de 1985 comecei a sentir contrações. Minha patroa me deu uma carona para o hospital, mas não pôde ficar lá comigo. Fiquei sozinha. Passei 24 horas em trabalho de parto. Foi muito sofrimento. Me lembro que a freira de caridade, ao me ver naquela situação, chamou o médico, que disse que eu precisaria dar conta, porque ele estava em uma cesárea de urgência. Fui levada para a sala de parto com um pediatra, uma enfermeira e a freira, que segurava a minha mão o tempo todo. Ela foi a única que me tratou com carinho naquele hospital.

Tive um parto muito difícil. O médico pediatra teve que se deitar em cima de mim para me ajudar a fazer força e precisou usar fórceps. Senti tudo, cada ponto que deram em mim. Minha filha nasceu no dia 1º de dezembro de 1985, às 11h40 da manhã. Só fiquei aliviada ao ouvir seu choro momentos depois.

Já era noite quando trouxeram a bebê para mamar, mas notei que ela estava sem a pulseira de identificação. Questionei, e a enfermeira me disse que havia caído. A bebê estava com as roupinhas do meu enxoval, que eu mesma tinha feito. Mais tarde, recebi a visita da minha mãe e depois a minha patroa, que me levou para sua casa. Consegui amamentar minha menina por 24 dias.

"Notei que o bebê estava sem a pulseira de identificação. Questionei, e a enfermeira me disse que havia caído"

Depois de um mês, fui expulsa da casa onde eu trabalhava com a recém-nascida nos braços. Quem me acolheu foi a mãe da minha patroa. Morei lá por uns 15 dias, até receber a visita inesperada da minha mãe me chamando de volta para a casa. Voltei, mas meu pai não conversava comigo por eu ser mãe solteira. Eu não podia sair de casa para nada, só podia trabalhar e cuidar da minha filha.

Quando a Thaisa tinha uns quatro meses, teve sua primeira crise convulsiva e passou a tomar remédio. A partir daí começamos a saga de consultas e médicos. Eu pagava mensalmente um plano de saúde particular para ela, que equivalia a metade do meu salário. A levei a uns dez neurologistas diferentes. Me lembro que andávamos mais de três quilômetros a pé com minha filha no colo para ir a consultas. E sentia um vazio muito grande, que não tinha explicação. Todos os médicos falaram que o que ela tinha era genético e eu estranhava isso. Um deles me disse que a patologia da minha filha teria sido por causa do parto. Isso me matou por dentro.

Na infância, Thaisa tinha uma dificuldade muito grande na escola. Além disso, ela tinha crises convulsivas quase que diárias, eu saía correndo para levá-la ao hospital. Quando ela tinha uns sete anos, descobri que minha filha tinha um problema motor e precisaria fazer um tratamento com uma psicopedagoga, mas eu não tinha dinheiro para pagar. Meus amigos fizeram um bingo beneficente para nos ajudar.

Em março de 1993, conheci o Diego, um cubano que não falava uma palavra em português, mas por quem logo me apaixonei. Nos casamos depois de cinco meses de namoro, coisa que nunca imaginei que ia acontecer comigo. No começo, não tínhamos nem cama para dormir. Tudo foi uma luta, mas foi lindo. Ele registrou minha filha lhe dando seu sobrenome, Fernandez. Nessa época, meu marido tirou a Thaisa da escola pública e começou a pagar uma escola particular para ela, para que a gente pudesse dar o máximo de oportunidade para ela se desenvolver cognitivamente. Ele sempre foi muito gentil e amável conosco. Um verdadeiro paizão.

O Diego era engenheiro químico e trabalhava como assessor de usinas, em um escritório de uns amigos argentinos. Ficamos morando oito meses em Sertãozinho e depois viemos morar em Ribeirão Preto. Nossa vida foi melhorando aos poucos.

Em janeiro de 1997, descobri que estava grávida. Nessa época, a Thaisa começou a dar bastante trabalho. Ela tinha 12 anos, não parava em nenhuma escola porque ameaçava bater nas professoras e nos colegas da classe. Em setembro de 1997, minha filha Victoria nasceu. Dois anos depois, em 1999, Diego resolveu comprar um terreno para construir a nossa casa dos sonhos. Nos mudamos no ano seguinte. Nesse mesmo ano, a Thaisa me perguntou quem era o seu pai biológico e eu lhe contei. Não disse em quais condições se deu a concepção dela, mas falei a verdade, ela merecia saber. Depois de um tempo, em casa, Thaisa teve um surto e falava que iria se matar e me matar também. Nessa época, aos 15 anos, ela foi diagnosticada com esquizofrenia. Ela sempre deu muito trabalho e eu sempre me senti culpada pela doença dela.

Em 2006, Diego subiu no sótão da nossa casa e caiu da escada. O encontrei caído no chão. Meu marido, que tinha 65 anos na época, ficou internado por três meses e por complicações das várias cirurgias, morreu. Diego não foi só meu marido, ele foi tudo pra mim. Sinto muita saudade dele até hoje.

Com sua morte, fiquei com muitas dívidas, tive que vender nossa casa. As meninas tinham 8 e 20 anos. Foram muitos altos e baixos. Mas, sempre consegui me virar para colocar comida na boca das minhas duas filhas. A caçula, Victoria nunca ficou sem estudar e Thaisa nunca ficou sem seu convênio médico. E, assim, nós resistimos e fomos sobrevivendo.

Até que em abril de 2022, numa sexta-feira, recebi uma carta registrada em meu nome. Era da Santa Casa de Sertãozinho, onde a Thaisa nasceu, dizendo que o hospital tinha um assunto urgente e do meu interesse. Estranhei. Não imaginava o que poderiam querer comigo.

Em uma chamada de vídeo alguns dias depois, me falaram que foi constatado que houve uma troca de bebês em 1985 e que existia a possibilidade da Thaisa não ser minha filha biológica. Não acreditei no que ouvi, não quis acreditar. Eles me explicaram que a minha suposta filha biológica tinha os procurado em janeiro, afirmando ter descoberto, por teste de DNA, que não era filha nem da mãe nem do homem que ela acreditava ser seu pai. O hospital, então, acessou todos os registros daquele dia e, por eliminação, me encontrou. Eu, Maria Regina, mãe solteira, que deu à luz às 11 horas e 40 minutos daquele dia. Tudo muito parecido com o caso da outra mãe, que também era mãe solteira e deu à luz no mesmo dia e horário. Fiquei em total estado de choque. Achava que isso só acontecia em filmes e novelas. Chorei sozinha no meu quarto com aquela revelação.

Nessa noite, mal consegui dormir. A sensação era de que eu estava caindo de um abismo, sentindo um vazio enorme no peito. A Thaisa acordou durante a madrugada e me viu sentada na sala pensativa. No dia seguinte, mal conseguia conversar com minha filha, que dizia que eu estava estranha. Para disfarçar, respondi que eu estava preocupada com o meu trabalho como corretora de imóveis. Cheguei em casa e liguei para a Santa Casa de Sertãozinho e me propus a fazer o exame. Queria tirar logo essa história a limpo. Mas não queria expor a Thaisa a ter que fazer um exame.

Marcamos o meu teste para a semana seguinte. Não sei como consegui segurar a ansiedade até lá. Foi tenso, passaram mil coisas pela minha cabeça de mãe. Foram seis dias de pura agonia. E tudo que eu conseguia fazer era pensar 24 horas em toda a minha trajetória de vida até ali. Várias memórias vieram à tona. Parece que foi um fantasma que criou vida e que estava constante em todos os momentos.

No dia 3 de maio de 2022, ao chegar ao laboratório de exames de Sertãozinho, avistei uma mulher com um bebê no colo. Começamos a conversar e achei ela parecida comigo quando era mais jovem. Fomos tomar um café para conversar melhor. Ela me contou que não tinha um bom relacionamento com a mãe, que cresceu com mais dois irmãos, o Luiz, que já havia morrido, e a Ângela. Quando lhe mostrei a foto da Thaisa, ela desabou e começou a chorar compulsivamente. Fiquei sem entender nada. Tati me contou que a Thaisa era muito parecida com o Luiz e me mostrou uma foto dele. Sim, eles eram idênticos. Ele era também era epilético, tinha atraso mental e era temperamental. Choramos juntas no café. Nossas histórias se pareciam demais e as atitudes e o jeito dela eram muito parecidos com os meus. Percebi, naquele momento, que ela era, de fato, minha filha biológica.

Tati me contou sobre todas as dificuldades que já passou. Confesso que fiquei com raiva. Sempre fiz tudo que podia para dar oportunidades para as minhas filhas e ela teve uma vida muito sofrida. Ela que cuidava dos irmãos, sempre trabalhou pesado para se manter, já trabalhou até em um lixão. Nunca pôde estudar, se casou cedo, aos 15 anos, para sair de casa, porque lá ela sofria abusos, e logo teve seus filhos. Nos despedimos ainda com muitas lágrimas nos olhos e voltei para casa, em Ribeirão Preto, com a sensação de um abismo no meio do meu peito.

Vic conheceu sua nova irmã alguns dias depois, no Dia das Mães, e foi um momento lindo, mágico. Na manhã seguinte, decidi contar tudo para a Thaisa. Para falar a verdade, ela não entendeu muito bem. Demorou um pouco para assimilar tudo. Parecia que estava com medo de eu deixar de ser sua mãe. Mas isso nunca iria acontecer.

Os testes de DNA comprovaram a troca de bebês. E, assim, de uma hora para outra, ganhei uma filha maravilhosa, três netos lindos, um genro e mais uma super história para contar. Recentemente, entramos com um processo contra o hospital de Sertãozinho para que eles possam tentar reparar todo esse mal que nos causaram. Ficamos 36 anos sem saber de toda a verdade.

Hoje, aos 56 anos, quero poder dar uma vida mais digna e tranquila para a filha que nasceu de dentro de mim. Tudo está acontecendo muito rápido. A vida deu muitas reviravoltas para encontrar a minha filha amada. Tem dias que sinto muita raiva, mas por outro lado, agradeço muito por ter descoberto tudo enquanto ainda estou viva. Quantos casos acontecem por aí e as pessoas nunca descobrem.

Thaisa vai continuar morando comigo. E vamos conviver todos com Tati e com os filhos dela também. Aqui não tem como destrocar nada. Aqui em casa e no meu coração só agrego pessoas. Separá-las, jamais."

Fonte: Marie Clarie


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