Setembro amarelo: índice de suicídio pode ser 4 a 10 vezes maior entre pessoas com autismo


No mês de campanha de prevenção ao suicídio, chamado de Setembro Amarelo, muito se fala sobre informações gerais sobre o tema, o que, de fato, é de extrema importância. Dados da Organização Mundial de Saúde (OMS) apontam que um brasileiro a cada 45 minutos tira a própria vida. Mas, um fato pouco discutido e ainda mais alarmante, é o de que o índice é quatro a dez vezes maior entre pessoas com transtorno do espectro autista (TEA).

O estudo que mostra que 66% dos autistas já pensaram ou ainda pensam em suicídio em algum momento da vida, foi publicado na revista The Lancet, do Reino Unido. Para o psicólogo Lucas Polezi de Couto, que pesquisa sobre autocompaixão com cuidadores e familiares de pessoas autistas, a questão é ainda mais complicada, já que também atinge os responsáveis por pessoas com TEA.

"Estudos dirigidos para pessoas autistas e mães, pais ou cuidadores legais existem em um número reduzido. Mesmo assim, os dados são alarmantes. Do grupo de pessoas autistas nível 1 analisadas pela Lancet, 35% tentaram suicídio em algum momento da vida e a morte por suicídio é a segunda causa mais provável para elas", disse.

Outra questão, segundo o pesquisador, que vem sendo apresentada em estudos, é que a incidência é quadruplicada em mulheres autistas.

No mesmo sentido, para o psicólogo clínico que atua na Associação dos Amigos dos Autistas do Espírito Santo (Amaes), Helder Sousa, o suicídio entre autistas é um fenômeno que necessita de um olhar muito especial.

"Boa parte destes suicídios se dão nos que se encontram no grau 1, que chamamos de 'autistas leves'. Não há uma explicação única sobre isso, mas entende-se que, possivelmente, seja porque há neles uma melhor compreensão sobre as condições que enfrenta diante da realidade da vida", afirmou o especialista.

Fatores

Segundo o psicólogo Couto, são exemplos do que serve de gatilho para a ideia do cometimento de suicídio:
a. O diagnóstico tardio ou a invalidação do diagnóstico;
b. A falta de inclusão no mercado de trabalho ou outros campos da sociedade;
c. Discriminação e exclusão como um todo;
d. A falta de uma rede de apoio eficiente e funcional;
e. Condição familiar deficitária;
f. Falta de acesso à educação de qualidade;
g. O desconhecimento de outras condições psiquiátricas que o indivíduo possa enfrentar além do autismo, já que estudos mostram que autistas são quatro vezes mais propensos a desenvolverem depressão ao longo da vida.

Esses dados, como explica o pesquisador, são preocupantes porque chamam atenção para o que a sociedade está fazendo para promover a inclusão e diminuir o risco e a vulnerabilidade enfrentada por essas pessoas autistas.

Também para o psicólogo clínico da Amaes, Helder Sousa, algo que dificulta o processo de apoio é que estas pessoas têm prejuízo na comunicação, em expressar com exatidão o que sentem e externalizar que precisam de ajuda.

"Por vezes a gente acaba confundindo os sintomas da depressão com os traços autísticos, de isolamento e dificuldade de falar, e isso acaba dificultando. São pessoas mais vulneráveis às questões do bullying e do abuso sexual, por exemplo, casos que potencializam muito o suicídio entre essas pessoas", esclareceu Sousa.

Como diminuir a vulnerabilidade

Para o psicólogo Lucas Polezi de Couto, alguns pontos que as pesquisas têm sugerido que podem diminuir a vulnerabilidade e se transformar em fatores de proteção são o suporte familiar e a diminuição de acesso a itens que possam ser utilizados para tentativas.

"E também temos que olhar e auxiliar para que esta pessoa entre em contato e lide com as respostas emocionais, isso tudo aliado a uma efetiva e adequada inclusão escolar. Que tenhamos políticas públicas que possibilitem e fomentem o tratamento efetivo, com psicoterapia, para pessoas autistas e suas famílias. Precisamos de uma sociedade mais validante e acolhedora. O autismo é um transtorno do neurodesenvolvimento que impacta consideravelmente a vida, mesmo assim cada um deve ser respeitado na sua singularidade", afirmou.

Diferenças nos métodos

Com relação aos métodos que essas pessoas usam para tirar a vida, o psicólogo da Amaes, Helder Sousa, afirma que estes são diferentes da população típica, segundo apontam estudos. "Enquanto a população geralmente tenta algum envenenamento, que por vezes permite reversão do quadro de uma tragédia, os autistas usam meios como instrumentos cortantes ou se jogando de algum local", contou Sousa.

De acordo com o psicólogo clínico, também é mais comum que ocorram episódios na adolescência ou na fase inicial da vida adulta. Isso porque no período infantil costuma ser dada atenção de uma forma especial.

"Além disso, enquanto crianças, costumam socializar melhor. Quando vão crescendo, vai aumentando isolamento, rejeição e as habilidades sociais são mais exigidas, então há sensação de fracasso em relação a isso, o que acarreta em uma propensão maior nessas pessoas", destacou.

Outra questão que pouco se fala, é que, às vezes, pelo fato de alguém ter o transtorno, segundo o especialista, as pessoas em volta acabam entendendo que ela não tem outras questões de ordem psiquiátrica.

"Mas, como qualquer pessoa, elas passam por diversos conflitos e transtornos de humor e isso é mais difícil de verificar por conta da confusão dos traços autísticos. É importante que os responsáveis observem esses pontos, para entender também se há traços de depressão, como o abandono de coisas que interessavam, isolamento ainda maior, comportamentos autolesivos, assim como falas como "estou cansado de viver" - que é típica de quem apresenta quadro de pensamentos suicidas", frisou Helder.

Familiares e responsáveis pelas pessoas com TEA

A reportagem também ouviu mães de pessoas diagnosticadas com o transtorno do espectro autista. Uma delas, Bárbara Campos, mãe de dois filhos autistas, faz parte do grupo Força Azul, voltado para o apoio a pessoas nesta condição. Para ela, é chocante também o número de responsáveis que sentem vontade de cometer suicídio.

“Geralmente são as mães que cuidam sozinhas de filhos com autismo. Dessas, entre 80% e 90% são abandonadas pelos parceiros e/ou pais das crianças. Então além de terem que cuidar, precisam prover a alimentação e as necessidades da família, sem falar no peso de ter um filho com deficiência, que é bem desgastante. Já foi dito que 'um dia sendo mãe atípica equivale a um dia de soldado em batalha durante a guerra'. O pai não ajuda no sustento e há a questão da falta de tratamento dessas crianças, principalmente pelo poder público, há pessoas em filas do SUS há cinco anos", desabafou.

Entre os principais desafios diários, Bárbara conta que há o preconceito e necessidade de lutar por leis que garantam benefícios. "Algumas mães, pelo que sei, chegam a tentar tirar a própria vida, às vezes tentam tirar a dos filhos também. Alguns autistas, crianças e adolescentes, principalmente com o isolamento da pandemia, se mutilaram e tentaram tirar a vida. Os casos se intensificaram. As mães ficaram sem trabalhar, com os filhos em casa, sem escola", explicou.

Ela também apontou que no grupo houve relatos de diversas mães que já chegaram a tentar suicídio. "Nosso grupo começou por uma fala de uma professora, alegando que a mãe de um aluno contou que queria tirar a própria vida e a do filho. Tudo isso precisa ser divulgado, muita gente fica sem conhecimento e buscam grupos de apoio, mas ainda é tudo muito precário", pontuou.

Também mãe de filho autista, a presidente da Associação dos Amigos dos Autistas do Espírito Santo (Amaes), Pollyana Paraguassu, conta que muitas mães a procuram no sentido de tentarem se sentir "inteiras", até mesmo por meio de acompanhamento psicológico. Muitas delas chegam falando que querem tirar a própria vida.

"Ao receber o laudo e saber que se está na condição de responsável por uma pessoa com esse tipo de necessidade, é sentir como se abrisse um buraco. Não é o que imaginamos ou planejamos. Pelo menos até encontrar uma rede de apoio, tudo são só possibilidades. A primeira sensação é do "por que eu", mas depois isso se transforma em "para que eu?", pois acredito muito que nada na vida acontece por acaso. Lidar com isso tem sido um crescimento para mim, passei a valorizar muito mais as coisas pequenas", descreveu a presidente.

Para ela, há uma imensa importância em abordar o tema e fazer a conscientização das pessoas. Paraguassu revela que as mães nesta condição vivem na defensiva, sempre tendo que mostrar laudos e buscar direitos.

"Deve ser colocada luz sobre isso e os números aumentaram. Em junho foi registrado que, a cada 30 pessoas, uma nasce com autismo no mundo. É preciso que haja rede de apoio e serviços de emergência, para que saibamos que não estamos sozinhas", disse.

A presidente da Amaes também comentou o abandono que as mães costumam ter de seus parceiros. "Pelo menos 80% é abandonada. Acaba sobrando tudo para nós e muitas vezes vem o processo depressivo, fazendo com que comecemos a não nos olharmos como mulher, mas só como mãe", finalizou.

O psicólogo da Amaes, Helder Sousa, endossa o que dizem as mães. "Elas passam por um estresse muito grande, devido à falta de rede de apoio, abandono dos maridos e/ou pais dos filhos. Uma pesquisa do Instituto Baresi, aqui no Brasil, mostra que 78% dos pais abandonaram os filhos com transtornos graves ou doenças graves, isso até os 5 anos de idade da criança. Há também um abandono familiar que a mulher sofre, além do social. Também deixam projetos de lado e enfrentam falta de orientações mais claras diante de um diagnóstico", resumiu.

Segundo o especialista, na Amaes vem sendo feita uma pesquisa para observar o nível de sintomas que as mães apresentam, que indicam a possibilidade de depressão, pensamento suicida, nível alto de ansiedade.

"Os números são bem altos, mas ainda não temos a pesquisa fechada, é possível que saia em novembro. Mas é muito comum sinais de desesperança, apatia, alteração de apetite, de sono, há uma série de questões que indicam depressão. Boa parte tem pensamento suicida ao longo da vida", disse.

Onde procurar ajuda emergencial?

Consultada a psicóloga Anna Carolina Chalabi de Vasconcellos, ela apontou formas de buscar ajuda em casos de emergência:

1. Procurar o Hospital Estadual de Atenção Clínica (HEAC), antigo Adauto Botelho, que conta com serviço de urgência e emergência em psiquiatria. O local fica em Cariacica.

2. Fazer uma ligação para o Centro de Valorização à Vida (CVV), que atende pelo número 188. O centro realiza apoio emocional e prevenção do suicídio, atendendo voluntária e gratuitamente todas as pessoas que querem e precisam conversar, sob total sigilo por telefone, e-mail e chat, 24 horas todos os dias.

Para Chalabi, é também importante lembrar das pessoas que perderam alguém próximo por suicídio. "É imprescindível incentivá-las a também buscarem auxílio e ajuda profissional e fortalecer os laços ao redor dessas pessoas. Estar presente e ajudá-las a lembrar que merecem cuidado. Devem ser procurados a psicoterapia e o acompanhamento psiquiátrico, para que a pessoa sinta que faz sentido viver", disse.

Fonte: Folha Vitória


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