Tutela masculina e violência doméstica: os problemas ainda enfrentados pelas mulheres no Catar

Mulher caminha em Doha, novembro de 2022 — Foto: AP Photo/Pavel Golovkin

Em um país onde 85% da população é composta por trabalhadores imigrantes, apenas um quarto da população do Catar pertencente ao sexo feminino — e as circunstâncias em que essas mulheres preocupa quem olha de fora. Entre os motivos destes anseios estão, por exemplo, o regime de tutela masculina, a violência doméstica e os feminicídios no emirado.

"Imagine um lugar em que você não pode nem ter organizações que defendam os direitos das mulheres", afirma Maria Laura Canineu, diretora do escritório brasileiro da ONG Human Rights Watch (HRW), em entrevista ao g1.

Um relatório da organização publicado em fevereiro de 2021 revelou que a falta de uma lei que proteja as mulheres contra a violência doméstica permite que abusos físicos e psicológicos sejam conduzidos sem consequências.

Para a catariana Zarqa Parvez, que é professora na Universidade Georgetown e estuda a relação entre a relação das mulheres com a formação da identidade nacional do Catar, os feminicídios são o maior problema enfrentado pela população feminina do país. No entanto, ela não acredita que a criação de uma lei para a proteção feminina será o suficiente.

De acordo com ela, é necessário mudar a forma com que as pessoas enxergam a violência doméstica no emirado, pois muitas vezes os abusos são naturalizados.

"Nossa cultura é muito 'particular', assuntos como esse são colocados na esfera privada, pois pertencem à família. Portanto, uma mulher não só não pode relatar [o abuso], como, já que não há mecanismo para ajudá-la depois, ela não tem para onde ir", conta Parvez.

A falta de informações também é um problema: na produção desta reportagem, encontrar os índices de violência doméstica no Catar não foi possível. O documento da HRW, por exemplo, foi baseado na revisão de 27 leis e políticas do Catar, e em 73 entrevistas com moradoras do emirado.

"Quando uma mulher tenta denunciar ou fugir da violência doméstica ou sexual, ela pode ser devolvida à família abusiva, presa [e, como já vimos,] até enviada para um hospital psiquiátrico", diz Canineu.

O documento da HRW também mostrou que um dos maiores problemas enfrentados pelas catarianas é o sistema de tutela masculina. O mecanismo faz com que muitas mulheres precisem pedir permissão para algum homem de sua família para poderem executar as mais diversas atividades, de estudar a viajar.

Embora o sistema contrarie duas leis do emirado, a prática continua comum em muitas famílias, principalmente nas mais conservadoras, que usam cultura, religião e tradição como pretextos para impor este tipo de dominação sobre as parentes.

Perspectiva de melhora

No entanto, um estudo publicado em 2019 pela pesquisadora Kaltham Al-Ghanim, da Universidade do Catar, revelou que esta visão está mudando — inclusive entre as mulheres.

"Neste estudo, a variação de idade foi significante: a maioria das participantes mais jovens acredita que o poder deveria ser distribuído [na família] entre homem e mulheres e que recém-casados deveriam compartilhar suas opiniões, enquanto os grupos mais velhos têm mais a opinião de que 'mulheres têm a liberdade de tomar decisões, mas devem obedecer seus maridos'", afirma a estudiosa na análise, publicada no Journal of Arabian Studies.

Apesar dos problemas, a evolução dos direitos femininos no Catar nos últimos anos é notável.

O estudo estatístico do governo do Catar publicado em dezembro de 2020 mostrou que 96% dos homens são economicamente ativos, enquanto o percentual feminino é de apenas 58%. Este número promete crescer, entretanto, considerando a presença das mulheres na universidades: em 2019, elas eram 67.5% dos formandos no emirado, enquanto eles eram 32.5%.

Estes dados, muitas vezes, podem soar contraditórios para quem é de fora. "[Muitos jornalistas do Ocidente] me perguntam como uma mulher graduada, com doutorado, ainda vive com a família, ou por que meu marido ainda permite que eu publique [artigos acadêmicos]", relata Parvez.

Catariana caminha em Doha, maio de 2010 — Foto: AP Photo/Kamran Jebreili

É por isso que a pesquisadora alerta para a importância de evitar simplificações e generalizações. "Quando eu morava no Reino Unido, ouvia uma mulher sendo espancada todos os dias fora do meu apartamento. Isso durou meses. [A polícia era chamada e] nada era feito", lembra. "Eu deveria generalizar este país por isso?"

Outro ponto importante ao tratar qualquer assunto relacionado aos direito humanos é se atentar ao contexto.

"[O Ocidente] gosta de se promover como moralmente superior e as mulheres do Oriente Médio sempre foram desprezadas, como quem precisa de salvamento", explica Parvez.

Esta superioridade mencionada pela catariana, que é amplamente discutida no livro "Do muslim women need saving?" ("Muçulmanas precisam de salvação?", em português), da conceituada antropóloga palestino-americana Lila Abu-Lughod, deixa de lado, muitas vezes, a história dos diversos povos que viviam no Oriente Médio antes e durante a colonização.

"As mulheres árabes sempre foram politizadas [usadas para fazer política]", afirma Parvez. "Durante o período colonial, [os europeus já] estavam aqui 'defendendo' a mulher árabe muçulmana, afirmando que era necessário 'largar a tradição e se modernizar' com o colonizadores."

Esta ideia, além de levar à criação de estereótipos em relação ao Oriente Médio, é danosa para as mulheres do Ocidente.

"As mulheres sofrem de diferentes formas ao redor do mundo. Não há um lugar onde [o cenário seja perfeito]", diz Parvez. Por isso, entender os diferentes tipos de opressão é essencial para resolvê-los.

Fonte: G1



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