PESQUISA | Anemia falciforme afeta saúde, rotina e emocional de portadores


Estudo da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto mostra a vivência diária de portadores da doença

Doença genética que afeta proteína do sangue é causa de inúmeras complicações, como úlceras de perna, crises intensas de dor e até AVC – Foto: SGT Johnson / Força Aérea Brasileira via Flickr – CC

Pesquisa da enfermeira Marcela Ganzella Sisdelli na Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto (EERP) da USP buscou entender e analisar as dificuldades enfrentadas no dia a dia dos portadores de anemia falciforme, tanto práticas como emocionais. Doença crônica, genética, hereditária e grave, ela acomete, em sua maioria, negros e pardos, e interfere bastante no cotidiano dessas pessoas.

De acordo com Marcela, doenças como câncer, diabete, hipertensão e Aids são as enfermidades crônicas mais difundidas e noticiadas, enquanto a anemia falciforme não recebe a devida atenção. “A doença é negligenciada e este estudo pode agregar conhecimento não só para a equipe de saúde, que lida diretamente com as complicações e situações ligadas à enfermidade, mas também em pesquisas futuras relacionadas, uma vez que essa é uma área pouco explorada”, aponta a enfermeira.

Para realizar o estudo, Marcela acompanhou 11 portadores da doença que relataram, por meio de entrevistas, todas as experiências da vivência diária com a anemia falciforme. A doença é causada pela presença, no organismo, de uma hemoglobina mutante – proteína cuja principal função é o transporte de oxigênio – chamada de S, o que leva à alteração genética. A anemia falciforme pode causar inúmeras complicações, como úlceras de perna ou crises álgicas (dor ocasionada pela obstrução do fluxo sanguíneo) e até acidentes vasculares cerebrais (AVCs). “Essas complicações se agravam nas mulheres gestantes”, alerta Marcela. “Dependendo da gravidade da úlcera de perna ou do AVC, a movimentação física pode se tornar mais difícil, o que faz com que as atividades profissionais também sejam prejudicadas, uma vez que, frequentemente, os pacientes precisam se ausentar do trabalho.”

A enfermeira diz que o mesmo ocorre com aqueles que vão à escola, e esses fatos abalam a autoimagem dos doentes e causam desesperança quanto ao futuro. “Exercer alguma atividade laboral, doméstica ou remunerada, cria situação de estabilidade, significa a retomada do papel de pessoa socialmente responsável. Na sua impossibilidade, imposta pelas complicações, limitações físicas e continuidade do tratamento, o papel de provedor da família é alterado.”

Segundo a pesquisadora, por falta de informações, a população não relaciona essa anemia a fatores como as crises dolorosas, infecções, vaso-oclusões, dores, isquemias e complicações pulmonares, responsáveis pela morte de 20% a 30% de pacientes adultos portadores da doença.

Ela é pouco conhecida porque, de forma geral, as pessoas equivocadamente a associam somente à mutação da hemoglobina, construindo a imagem de que é algo simples e de fácil tratamento.”

Alguns entrevistados do estudo relataram aderir à “cultura do silêncio” como forma de autoproteção e, em muitos casos, não houve a procura por tratamento, seja por vergonha ou medo de ser vítima de preconceito – Foto: Paulo Henrique Orlandi Mourao/Wikimedia Commons

Outro fator apontado como preocupante por Marcela é que as pessoas não conhecem o tratamento, que é focado na prevenção das complicações, e a transfusão de sangue é o principal deles, muito menos a dificuldade do paciente para manutenção da terapia.

“Alguns entrevistados relataram aderir à cultura do silêncio como forma de autoproteção e, em muitos casos, não houve procura por tratamento, seja por vergonha ou medo de ser vítima de preconceito. Cada fase da vida, adolescente e adulta, tem um motivo para não tratar. Inclusive, podem ausentar-se das aulas ou do trabalho e calam-se sobre a sua condição para manter as relações, o que afeta seu tratamento”, alerta.

Há ainda, as dificuldades relacionadas à gestação e à maternidade. A enfermeira esclarece que, durante a gestação, a mulher com anemia falciforme fica mais propensa a contrair infecções bacterianas, abortar, ter um parto prematuro e hemorragias, além das crises dolorosas serem mais intensas e frequentes. No entanto, em alguns casos, o sonho de ser mãe leva ao enfrentamento das complicações, talvez pela falta de informações.

“Algumas mulheres que participaram do estudo tinham filhos e narram suas dificuldades durante a gestação e, portanto, o medo de engravidar novamente. No entanto, aquelas que ainda não tinham filhos sonhavam ser mães, mas tinham medo das complicações.”

Marcela lembra que é fundamental para a mulher que deseja engravidar receber todas as informações sobre as condições de uma possível gestação. “A mulher com anemia falciforme pode engravidar, mas ela deve ter conhecimento dos riscos para optar pela maternidade e, caso decida engravidar, deve ser acompanhada por uma equipe de saúde especializada.”

Marcela alerta ainda que os profissionais de saúde da rede básica “não são capacitados para trabalhar com as complicações ocasionadas por esta doença, como, por exemplo, cuidar de uma úlcera de perna ou uma crise álgica”.

Soluções

Marcela explica que “se o paciente tiver acesso aos medicamentos (fornecidos pelo SUS), às consultas médicas com hematologista e à transfusão de sangue quando necessária, provavelmente conseguirá trabalhar e contribuir com a sociedade e, assim, sentir-se mais útil”. Ela ainda sugere “a elaboração de programas sociais nos quais as pessoas com anemia falciforme possam assumir atividades laborais compatíveis com a doença, como uma oportunidade de manutenção do emprego e do aumento da renda”.

Apesar das adversidades, o sorriso no rosto e a fé dos participantes da pesquisa impressionaram a pesquisadora. “O que me marcou foi conhecer as dificuldades dessas pessoas no dia a dia, seja pelo tratamento, pela incerteza de uma complicação, ou pelo receio do futuro, além das dificuldades financeiras. Mesmo assim, expressam uma enorme vontade de viver. São pessoas muito simples que me receberam muito felizes em suas casas. Me agradeceram pelo simples fato de estarem sendo ouvidas.”

Fonte: Jornal da USP


Postagem Anterior Próxima Postagem