Invasão ao Iraque: entenda como uma mentira há 20 anos mudou o mundo

Forte tempestade de areia cobre comboio de Fuzileiros Navais ao norte do rio Eufrates, no Iraque Ozier Muhammad/The New York Times

No ano passado, aos 75 anos, o ex-presidente dos Estados Unidos George W. Bush (2001-2009) cometeu uma gafe que a internet não perdoou. Ao criticar a guerra da Ucrânia chamou de “injustificada” e “brutal” a “invasão... do Iraque”. O lapso foi logo chamado de “ato falho”, já que foi ele o responsável pela invasão, que completa 20 anos no dia 20 deste mês.

Depois dos atentados do 11 de Setembro de 2001, os Estados Unidos invadiram o Afeganistão para caçar o líder da al-Qaeda, Osama Bin Laden, e derrubar o governo do Talibã, acusado de dar abrigo ao grupo responsável pelos maiores ataques terroristas da História em solo americano. No Iraque, o alvo — as supostas armas de destruição em massa, que representariam uma ameaça à segurança dos EUA — nunca foi encontrado. A existência das armas foi o argumento central da tese de “guerra preventiva” que justificou a invasão — e se revelou falso.

Os Estados Unidos arregimentaram aliados e partiram para a ofensiva, que duraria oito anos. A organização Iraq Body Count registra mais de 120 mil mortes de civis até 2011. Entre os militares americanos, o Departamento de Defesa americano contabiliza mais de 4,4 mil baixas até setembro de 2010.

Saiba, em cinco pontos, as repercussões destes 20 anos e as consequências do conflito para a geopolítica mundial:
  • Instabilidade no Oriente Médio: a invasão do Iraque — e a Primavera Árabe, que anos depois, derrubou ditaduras, em países árabes — provocaram mudanças profundas nas dinâmicas de poder na região;
  • Origem do Estado Islâmico: a queda da ditadura de Saddam Hussein abriu caminho para o surgimento de um braço mais violento da al-Qaeda e, mais tarde, para o movimento extremistas que se organizou na Síria como Estado Islâmico;
  • Influência do regime dos aiatolás: após a guerra, a maioria xiita subiu ao poder no Iraque e, com ela, cresceu a influência do Irã no país vizinho e, paralelamente, em toda a região;
  • Ascensão da China: após o desgaste no Iraque e no Afeganistão, a política externa americana se voltou para a Ásia. Com a retirada americana, os chineses buscam ampliar a influência diplomática e econômica no Oriente Médio;
  • Credibilidade americana no mundo: os escândalos de violações de direitos humanos, em nome da "Guerra ao Terror", abalaram a imagem dos Estados Unidos no Oriente Médio e no mundo.

Instabilidade no Oriente Médio

— Foto: Editoria de arte

A invasão do Iraque e os eventos subsequentes transformaram a região. Em primeiro lugar, a invasão encerrou o ciclo de submissão da maioria de muçulmanos xiitas ao controle da minoria sunita no país árabe. Com a queda do regime, e a prisão e execução do ditador Saddam Hussein, explodiu o caldeirão sectário, em ebulição até hoje.

— São vários Iraques dentro do Iraque: tem o Curdistão, uma região com mais autonomia, mas as relações com o governo central são muito tensas, por conta das exportações de petróleo — afirma a pesquisadora sênior e cofundadora do Grupo de Estudos e Pesquisa sobre o Oriente Médio, Muna Omran. — E um outro lado que é pró-Irã [xiita], com uma interferência iraniana muito grande, o que também causa instabilidade política.

A tentativa dos EUA de implementar uma democracia liberal onde antes havia uma ditadura sangrenta foi parte importante da propaganda de guerra, já que, sob a Doutrina Bush, a implementação desse sistema seria uma forma de combater a propagação do terrorismo.

Para muitos estudiosos, afirma Omram, a imposição de democracia e a queda de Saddam abriram espaço para a Primavera Árabe, série de protestos contra regimes autocráticos no Oriente Médio e Norte da África que começou na Tunísia, em dezembro de 2010, derrubou ditadores, como o presidente egípcio Hosni Mubarak, e arrastou a Síria para a guerra civil.

— Os países dessa região têm um conceito totalmente diferente de democracia, esse modelo liberal não existe no mundo árabe — pontua a pesquisadora sênior.

Para o diretor para o Oriente Médio do International Crisis Group, Joost Hiltermann, a Primavera Árabe está na origem da grande instabilidade atual, com zonas onde a imprevisibilidade e as tensões sectárias são ainda maiores do que em março de 2003.

— Na época, a guerra causou grande desestabilização, mas o Iraque de algum modo se recuperou, não com uma grande estabilidade, mas ao ponto de não ser o país mais instável da região — disse ao GLOBO durante viagem ao Curdistão iraquiano. — A situação em países como a Síria, o Iêmen, e a Líbia é bem mais instável do que o Iraque hoje.

Origem do Estado Islâmico

— Foto: Editoria de arte

Outra consequência da invasão do Iraque foi o início das atividades do grupo terrorista Estado Islâmico (EI), que ficou mundialmente conhecido em 2004, quando assumiu o controle de partes dos territórios sírio e iraquiano. Como lembra Hilterman, a organização é o espólio do derrotado braço da al-Qaeda no Iraque, um produto das divisões sectárias pós-invasão.

Até uma coalizão internacional expulsá-lo dos territórios ocupados, o EI chegou a controlar cidades estratégicas e cometeu atrocidades contra a população civil.

— O que o Estado Islâmico fez no Iraque, que foi inclusive reconhecido como genocídio, foi a perseguição à minoria yazidi — lembra Omran.

Nadia Murad, uma das sobreviventes do extermínio yazidi no Norte do Iraque, foi premiada com o Nobel da Paz em 2018, ao expor ao mundo os abusos cometidos contra civis — especialmente mulheres e crianças — na campanha de conversão forçada e de extermínio.

Influência do regime dos aiatolás

Apesar de a influência do Irã nos vizinhos não ser produto da ocupação americana, já que a sombra dos aiatolás já permeia os confrontos entre Israel e o movimento xiita libanês Hezbollah desde a guerra do Líbano, em 1982, a invasão permitiu à nação persa ampliar seu escopo de ação, afirma Hiltermann.

No Iraque, pontua Omran, além da nova frente de conexão com milícias xiitas que passaram a se organizar após a queda do regime sunita de Saddam, Teerã também tem voz na economia até o jogo de alianças entre grupos xiitas.

— O Iraque depende economicamente do Irã e também do gás iraniano. E eles têm no Parlamento a maioria desses movimentos xiitas que são pró-Irã, além de paramilitares ligados ao Irã que foram integrados ao Exército Iraquiano — explica a pesquisadora sênior.

Além da ação no Iraque, as ações iranianas foram vistas no envio de combatentes do Hezbollah para lutar na Guerra Civil síria e na interferência nos conflitos no Líbano e no Iêmen.

— De uma perspectiva árabe, o Irã vem ampliando sua influência na região em todo esse período — diz Hiltermann.

Ascensão da China

No início do mês, o mundo foi surpreendido por um acordo de reabertura de relações diplomáticas entre o Irã e a Arábia Saudita após sete anos de hostilidades. Mas a surpresa não foi necessariamente a aproximação entre os países do Oriente Médio, mas na presença da China como mediadora.

Após a saída do Iraque, em 2011, o governo do então presidente americano, Barack Obama, mudou o foco da política externa do Oriente Médio para regiões da Ásia e do Pacífico, em franca oposição aos interesses chineses.

Andrew Traumann, professor de Relações Internacionais do Unicuritiba e pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisas em Oriente Médio, explica que a estratégia não mudou no governo do republicano Donald Trump nem com a eleição de Joe Biden.

— Nas relações internacionais não existe vácuo: se alguém está saindo, outro vai entrar – afirma Traumann. — E a China não quer ser apenas uma potência econômica: quer ser um ator das relações internacionais.

A vitória diplomática chinesa ocorre no momento em que os Estados Unidos tentam ser fiadores de um pacto para normalizar as relações entre Israel e a Arábia Saudita, algo que fica em risco com a reconciliação entre Riad e Teerã.

— Mohammed bin Salman (príncipe herdeiro da Coroa saudita), percebendo esse desengajamento americano, começou a se aproximar também da China e da Rússia — diz Traumann. — Ele não quer ficar atrelado ao Biden, esperando os Estados Unidos darem o primeiro passo e apenas reagir à política externa americana. Ele está buscando diversificar, está sendo muito pragmático.

Credibilidade americana no mundo

— Foto: Editoria de Arte

A aventura no Iraque sob a chamada "Guerra ao Terror" impactou a imagem dos Estados Unidos no Oriente Médio e no mundo, principalmente com denúncias de violações de direitos humanos.

A prisão iraquiana de Abu Ghraib, historicamente ligada à repressão e à tortura do regime de Saddam, foi convertida em cenário de torturas físicas e psicológicas cometidas pelos próprios militares americanos, chocando a opinião pública dentro e fora dos Estados Unidos.

Logo após a revelação dos abusos, em 2004, o número de americanos que considerava a guerra indo "bem" ou "razoavelmente bem" ficou abaixo de 50% pela primeira vez, segundo o instituto Pew Research Center.

O instituto também comparou o sentimento antiamericano no mundo antes e depois da guerra. Na Alemanha, o número de pessoas com percepção positiva dos Estados Unidos caiu de 61% para 45%, na França de 63% para 43% e, no Brasil, de 52% para 34%.

Para Omran, tanto o escândalo em Abu Ghraib quanto o impasse para desativar a prisão de Guantánamo, em Cuba, são fantasmas que assombram a credibilidade americana, principalmente no mundo árabe.

— Não podemos esquecer o que aconteceu em Guantánamo e Abu Ghraib, e isso acaba reforçando o discurso antiamericano do Irã, que tem apoio também no Iraque — diz Omran. — Esse antiamericanismo acaba reverberando na região.

Hiltermann concorda.

— O mais comum é a acusação de que os americanos têm dois pesos e duas medidas para as questões da região — conclui.

Fonte: O Globo


Postagem Anterior Próxima Postagem