Crimes de intolerância religiosa triplicam em um ano no ES

Ao todo, 15 casos foram registrados em 2022, contra 5 no ano anterior. Religiões de matriz africana, como a umbanda e o candomblé, são os maiores alvos de ataques

Foto: Freepik

Crimes de intolerância religiosa triplicaram em um ano em todo o Espírito Santo. Segundo dados da Secretaria de Estado da Segurança Pública e Defesa Social (Sesp), em 2021 foram registrados cinco infrações deste tipo, número que inflou para 15 no ano passado.

No Brasil, a pena para quem comete este tipo de infração é de um mês a um ano de reclusão ou pagamento de multa. Se a prática for realizada com emprego de violência ou ameaça a pena pode ser aumentada em até um terço.
"No Código Penal há previsão legal para quem perturbe um impeça a prática de culto religioso. É o crime definido como 'Ultraje a culto e impedimento ou perturbação de ato a ele relativo'", explica a advogada criminalista Joyce Mazzoco.

"Recentemente a Lei nº 14.532, de janeiro de 2023 trouxe alteração ao Código Penal acrescentando o §3º ao artigo 140, quando a prática de preconceito ou intolerância religiosa é realizada por meio de injúria", complementou.

O artigo 140 ao qual a advogada se refere a injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro. Já, o §3º diz respeito a injúria, que consiste na utilização de elementos referentes a religião ou à condição de pessoa idosa ou com deficiência.

Além disso, permanece uma previsão da lei de racismo, Lei nº 7.716/89, que prevê no artigo 20 pena de reclusão de um a três anos e multa pra quem "praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional".

Os principais alvos deste tipo de infração são religiões de matriz africana, como a umbanda e o candomblé, principalmente por preconceitos de raça e cor, o que acarretou a mudança na lei, como explica a advogada.

"Por se tratar de religião de matriz africana, em que ainda há um grande preconceito racial que resulta na prática de intolerância religiosa contra as religiões de umbanda e candomblé, que a nova lei foi aprovada. O intuito de punir quem tenta ir de encontro com o direito constitucional", disse.

 Foto: Reprodução/Arquivo Pessoal

No último dia 3 de maio, um pedreiro armado invadiu um centro de umbanda em Vila Velha, hostilizou pessoas que estavam presentes no local, além das próprias filhas, de 14 e 16 anos.

Ao invadir o espaço, ele proferiu ofensas e falas intolerantes aos presentes.

O pedreiro chegou a ser autuado no local por posse de drogas para consumo próprio e por praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, mas foi liberado após audiência de custódia.

A advogada relata que é necessária uma apuração mais aprofundada sobre o caso, mas que há indicativos de crime de intolerância na ação do suspeito.

"Eu vi a notícia, entretanto, não tive acesso aos autos do caso. Então, não dá para eu fazer uma análise do caso concreto. Mas, considerando que a pessoa tenha adentrado o terreiro de umbanda armado com intuito de ameaçar as pessoas e filhas em razão da prática religiosa que ali ocorria, para tentar impedir que as filhas e os demais integrantes da religião praticassem seu culto religioso, sim", disse a advogada.

Relatos de intolerância

Para quem já sentiu o preconceito na pele, a lei é uma necessidade para coibir atos de violência e intolerância direcionadas à própria religião.
"Achei lamentável, nos dá medo e insegurança a ignorância e a intolerância do ser humano", disse Dreiwis Carneiro Pirajá, sacerdote de umbanda na Casa Preto Velho de Oxalá, em Vila Velha.

Praticante da religião há 31 anos, ele conta que a casa já foi alvo de intolerância por diversas vezes. "Pessoas que desconhecem a religião desmerecem, ironizam e acreditam que possa fazer algo de mal", disse. 

 Foto: Reprodução/ Arquivo Pessoal

O velho estigma de que a umbanda é uma afronta a dogmas cristãos e uma prática que possa vir a prejudicar as pessoas ainda acontece até hoje, como relata o sacerdote.
"Se referem à umbanda como religião do diabo, muitos desconhecem que a umbanda prega apenas o amor. Eu com minha experiência de duas teologias e vivência dentro da religião, consigo mostrar as pessoas, o preconceito é vencido com amor".

Segundo Dreiwis, a luta contra o preconceito não deve ser uma batalha exclusiva dos segmentos de matriz africana, mas de todas as religiões como um todo, além do poder público, para enfrentar o racismo e a intolerância em todos os âmbitos da sociedade.

"Não só a intolerância, como o racismo religioso ou qualquer forma de preconceito, deve ter iniciativa do poder público e união entre todas as religiões. A tradução de religião é o ato de se religar a Deus, cada um faz isso da sua própria maneira", afirmou.
Polícia tem seção especial para atender vítimas de preconceito

Em 2019, a Polícia Civil criou a Seção de Investigações Especiais - Pessoas Vítimas de Discriminação Racial, Religiosa, Orientação Sexual ou Deficiência Física, que funciona sob a Delegacia de Proteção ao Idoso (Depi).

A seção é responsável por investigar denúncias referentes ao preconceito ou intolerância religiosa. De acordo com a titular, delegada Milena Girelli, muitas vezes, os perpetradores deste tipo de violência sequer têm noção de que cometem um crime.

"Muitas vezes, as pessoas não têm noção, ainda mais quando se leva em consideração as redes sociais. Elas se sentem muito livres, acham que podem dizer o que quiserem sem consequências, que tudo é uma opinião, um simples xingamento na internet", disse.

A delegada informou que apesar do aumento de casos, o crime pode ser difícil de se detectar, pois muitas vezes não há casos flagrantes, o que ocorre com mais frequência são denúncias posteriores das vítimas, o que leva ao início de uma investigação.

"Perde-se o calor dos acontecimentos, muitas vezes as pessoas que cometeram estes crimes já chegam à delegacia com orientação jurídica, então já chegam com uma postura bem diferente do momento em que cometeram o crime", contou.

Outro complicador é o fato de que, muitas vezes, o crime de intolerância é cometido junto a outras infrações consideradas mais urgentes no momento, como uma agressão ou uma lesão corporal, que são consideradas prioridade na investigação.

"No registro da ocorrência há o resumo dos fatos, então se consta uma agressão ou lesão corporal, é isso que começaremos investigando. Muitas vezes, no decorrer das investigações, é que a vítima revela o motivo das agressões, que podem ter se iniciado por intolerância, até mesmo casos de homofobia ou injúria racial, o que dá um novo rumo para a investigação".

A delegada corrobora que a maior parte das pessoas atendidas por conta de intolerância racial são adeptas a religiões de matriz africana e que demonstram até mesmo certa insegurança em professar a própria fé.

"Muitas vezes são pessoas que nos procuram para pedir alguma informação, saber mais. Às vezes, nos contam que são do candomblé ou umbanda, mas que preferem não contar para outras pessoas, até por medo", disse.

Fonte: Folha Vitória

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