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Construção da Ponte Rio-Niterói — Foto: EURICO DANTAS - ARQUIVO - JB NI - CONSTRUÇÃO DA PONTE RIO NITEROI |
Um dos grandes mitos na construção da Ponte Rio-Niterói, inaugurada há exatos 50 anos, é sobre a existência de corpos de operários concretados nos pilares que brotam do mar. O engenheiro Marnio Camacho, de 85 anos, garante que no tempo em que participou das obras para erguer a estrutura de ponta a ponta entre o Rio e Niterói não aconteceu nada parecido. Segundo ele, houve, de fato, muitos acidentes na época devido à ausência de equipamentos de segurança e procedimentos como nos dias de hoje.
— Há comentários que muitos operários teriam sido concretados por ocasião da construção dos pilares, suposição, para mim, totalmente infundada face aos processos executivos. As plataformas importadas para execução dos tubulões e blocos de coroamento não permitiam esse tipo de acidente.
Marnio trabalhou nas fundações do Vão Central, o trecho mais complicado do empreendimento, além de prestar consultoria geral de geologia e geotecnia em toda extensão da obra. Ele era diretor da Tecnosolo, uma das empresas de engenharia que atuou na construção.
No convívio nos canteiros, Marnio não viu nem ouviu nada sobre a queda de operário durante o preenchimento dos pilares com concreto. Mesmo assim, o engenheiro acredita que o número de mortos no decorrer das obras tenha sido subestimado. O Brasil à época vivia em plena ditadura militar e as informações eram muitas vezes abafadas.
— Numa obra desse porte, num ambiente com grandes dificuldades de trabalho, evidentemente, eram esperadas ocorrências de algumas dezenas de acidentes, mas os números oficiais divulgados certamente não são fidedignos. Naquela época, existiam sim uns poucos equipamentos básicos de segurança, mas não na intensidade e qualificação dos hoje disponíveis e recomendados para cada caso específico — conta Marnio, que hoje passa os dias entre o Rio de Janeiro e Rio Novo, no interior de Minas Gerais.
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Desmoronamento em teste com tubulões de aço causou a morte de oito funcionários em 25 de março de 1970 — Foto: - Foto Arquivo / Agência O Globo |
No principal acidente ocorrido durante a construção, os jornais publicaram que a tragédia havia deixado oito mortos, três dos quais eram engenheiros. Mas Marnio lembra que os relatos no canteiro davam conta de uma tragédia ainda maior.
— Um acidente durante os testes de cargas dos tubulões talvez seja o que teve maior repercussão e, segundo se soube extraoficialmente, 28 vidas teriam perecido, dentre as quais três engenheiros de alta classificação técnica — conta Marnio, que no período do fato não estava no canteiro de obras.
No teste a que Marnio se refere, realizado pelo Instituto de Pesquisas Tecnológicas, em março de 1970, grandes tubos de aço cheios de água, colocados sobre plataforma para verificar o peso que a estrutura seria capaz de suportar, desmoronaram como em um jogo de varetas. Os tubos deveriam resistir a uma carga de 1 mil toneladas, mas nos testes teriam de ser expostos a 2 mil toneladas.
Desafio na engenharia
Marnio lembra que o projeto da ponte representava um grande desafio para a engenharia brasileira. Era uma ideia surgida ainda no tempo do Império. Foram quase seis anos de construção até a inauguração em 4 de março de 1974. O nome oficial é Ponte Presidente Artur da Costa e Silva, com 13,29 km de extensão.
Marnio conta que o clima no canteiro de obras era de otimismo. Para ir de carro do Rio a Niterói era preciso usar uma balsa para a travessia. Outra alternativa seria contornar toda a Baía de Guanabara até Niterói, totalizando cerca de 120 quilômetros de distância. Hoje a travessia da ponte em condições normais de trânsito é de apenas 13 minutos.
— Criou-se imediatamente um clima de grandes expectativas com a possibilidade da geração de milhares de empregos e as perspectivas de bons negócios junto aos fornecedores de insumos. Antevia-se a obtenção de excelentes resultados econômicos, beneficiando a economia regional e brasileira, graças à materialização de nova ligação terrestre entre a Região Centro-Sul com o Nordeste do país, até então restrito ao traçado interiorano da BR-116 — opina.
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Marnio Camacho comandou os testes de resistência dos pilares no Vão Central — Foto: Élcio Braga |
Na engenharia, no entanto, o clima era de preocupação com os desafios para se concretizar o projeto sobre o mar da Baía de Guanabara. Embora o traçado pudesse ser mais curto, aproveitando o trecho em que Rio e Niterói estão mais próximos, optou-se por um percurso mais longo, mas que evitasse o trânsito caótico do centro urbano das duas cidades.
O trecho mais complicado da obra era o Vão Central, de 300 metros de extensão e que se eleva a 72 metros do nível do espelho d’água para a passagem dos navios que entram e saem da Baía de Guanabara. Foi justamente nesta etapa da obra que Marnio, atuou. Ele coordenou os testes de resistência das fundações na parte mais profunda da baía — 40 metros, aproximadamente. Outros dois vãos de 200 metros de extensão se ligam ao principal.
A engenharia brasileira já dispunha de desenvolvimento próprio de tecnologias, como as sondagens subaquáticas, tirantes protendidos, injeções de cimento e provas de carga. Mas ainda não haviam sido testadas em uma macro-obra.
— Quanto às injeções e adições de produtos químicos, há que se lembrar do grande número de aditivos empregados no concreto, seja para agilizar ou retardar pegas, dotar da plasticidade ideal para possibilitar bombeamentos, tornar resistível a ambiente salobros, desformas sem máculas, enfim, tudo necessário para cada tipo de uso. Entretanto, no processo de montagens das aduelas, foram utilizados cabos protendidos e, para garantir a perfeita junção entre cada aduela, foi usado a resina epóxi até então de uso inédito no Brasil — descreve Marnio, sobre o processo de montagem dos blocos da ponte.
O uso de grandes treliças apoiadas entre pilares foi o equipamento que permitiu grande avanço no cronograma construtivo.
— Toda essa tecnologia então mobilizada seria testada durante a montagem dos três vãos centrais para elevar estruturas de aço a 72 metros de altura, ou seja, verdadeiros transatlânticos. Essa gigantesca carga exerceria enormes solicitações nos tubulões que não poderiam ceder a recalques, mesmo que milimétricos. Os tubulões correspondentes aos pilares 101, 102, 103 e 104, foram testados com pleno êxito — lembra Marnio.
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Mergulhadores buscam por corpos na área do acidente com tubulões em teste do IPT em 25 de março de 1970 — Foto: Agência O GLOBO |
O engenheiro assinala os detalhes da complexidade do teste de resistência na área mais profunda, o do canal de navegação abaixo do Vão Central. Ele só assumiu esse desafio depois do fracasso do teste do IPT.
— Foi o maior teste de carga de um tubulão de 2,20m, através de um complexo envolvendo dezenas de tirantes ancorados abaixo da base de cada tubulão, com comprimento de cerca de 110m. Essa técnica foi um verdadeiro recorde mundial que depois foi também usado para testar as fundações do Reator de Angra 1 — observa Marnio, que sente orgulho em cruzar a ponte que ajudou a colocar de pé.
Fonte: O Globo