A crença de ter muito ou pouco dinheiro ao se comparar com os outros, na vida real ou nas redes sociais, ganha outros contornos, prejudicando o bem-estar
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A rotina da administradora de empresas Rubia Gouveia, de 40 anos, foi, durante muito tempo, repleta de extravagâncias. Para igualar-se ao padrão de vida dos amigos de faculdade, uma das mais caras de São Paulo, trabalhava “como um trator” e torrava o dinheiro em roupas, sapatos e bolsas. E, aos finais de semana, era embalada por festas e gastos intermináveis. “Queria ter o que aquelas pessoas, na maioria herdeiras, tinham. Não media esforços para ser promovida. Sempre precisava de mais.” O auge do descontrole financeiro aconteceu em uma viagem a Paris, para visitar o irmão. Na época, comprometida com as parcelas da compra do apartamento próprio e recém-demitida, gastou 3 mil euros em uma bolsa de grife. “Entrei na loja e comprei de forma zero racional”, relembra.
Mesmo longe de um dia a dia restritivo, Rubia, que hoje é consultora e lançou o livro “Faça as pazes com o dinheiro”, sobre a jornada de cura financeira, viu no ímpeto da compra da bolsa um símbolo irrefutável de sua “dismorfia financeira”. O sentimento, batizado pelo The New York Times em reportagem recente, funciona tal qual a dismorfia corporal: a pessoa cria uma visão distorcida do próprio corpo, se achando magra ou gorda demais, baseado em quem ou no que se compara. Na versão financeira, é como um borrão aplicado à conta bancária. A crença de ter muito ou pouco dinheiro ganha outros contornos, prejudicando o bem-estar.
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A administradora de empresas e consultora financeira Rubia Gouveia — Foto: Arquivo pessoal
“Você até tem o suficiente para viver bem, mas ao olhar para as redes sociais, acredita estar ficando para trás e se questiona: ‘Onde estou errando?’”, afirma o escritor e especialista em pesquisa de tendências Jorge Grimberg. “Muita gente se sente inadequada, endividando-se para conquistar um resultado que nunca será o suficiente”. Grimberg explica ainda que, em tempos de crise econômica, é comum a sociedade ostentar pequenos luxos, criando a falsa sensação de que nada vai mal. “Nos anos 1980, nasceu o chamado ‘efeito batom’. Eram gastos com cosméticos de grife.” Hoje o cenário se repete, só que na vitrine “luxuosa” no Instagram. “Essa comparação constante remodela nossa visão de classe social. De tanto ver riqueza on-line, quem é classe média começa a se sentir mais pobre, mesmo estando financeiramente estável”, aponta ele.
Segundo pequisa da empresa financeira norte-americana Credit Karma feita no ano passado, 43% da geração Z e 41% dos millennials sofrem de dismorfia financeira. Soma-se a isso a espetacularização da vida das influenciadoras. Para se proteger, a escritora Paula Just, de 35 anos, deu unfollow em determinadas criadoras de conteúdo. “Não me endividei, mas gastei mais do que gostaria e, então, decidi parar de seguir várias delas. É um estilo de vida surreal”, diz. “Ficava confusa e me perguntava: ‘Por que elas têm certas coisas e eu não?’. As redes catalisavam minha ansiedade. A gente demora a se dar conta de que influenciadoras ganham muitas coisas e mostram apenas fragmentos da vida.”
Educadora financeira e influenciadora, Nath Finanças crê que falar sobre dinheiro abertamente, incluindo com o parceiro amoroso ou a família, ainda é tabu; por isso, a grama do vizinho sempre parece mais verde. “A rede social camufla a realidade. Ser bem-sucedido não é postar um carro ou uma casa, porque aquele bem material pode ser de alguém... É uma visão limitada.” Por isso, observe bem antes de acreditar que só você não fez a viagem dos sonhos no feriado, não frequenta restaurantes hypados, ou não tem o último lançamento que está na vitrine. “O mar de conteúdo da internet não atrapalha só o viés financeiro: atrapalha o viés estético, da perfeição. É preciso se voltar conscientemente para a própria vida e entender possibilidades. Porque ter as finanças em dia e, eventualmente, alguns luxos, é essencial para o nosso bem-estar”, conclui a psicóloga Daniela Faertes.
Fonte: O Globo