No início da pandemia era muito frequente ouvir que “o novo coronavírus não distingue gênero, etnia ou condição financeira” e que todos estavam “no mesmo barco”. Mas o tempo passou, a doença avançou, chegou ao Espírito Santo e mostrou que a realidade é outra: quem não pode ficar em casa ou não tem acesso irrestrito à água e sabão, por exemplo, está mais suscetível à Covid-19.
Prova disso é que mais de 70% dos casos confirmados do Estado afetam pretos e pardos, que também representam a maioria da população de baixa renda ou que exerce trabalhos braçais. Para tentar conter esse desigual e cruel avanço, representantes do movimento negro se uniram e discutiram, a partir de meados de maio, quais medidas são necessárias.
O resultado será levado ao Governo Estadual na manhã desta quinta-feira (4): um documento com 105 reivindicações, entre as quais o lockdown e a construção de um hospital de campanha. Além da exigência de maior testagem e da identificação dos óbitos e dos casos confirmados por raça. Um abaixo-assinado com mais de 2.500 assinaturas também será entregue.
"Nós temos duas preocupações. A primeira é que, de fato, está se confirmando o que uma série de estudos já vinha apontando: de que a população negra será a grande vítima dessa pandemia. E a segunda é que, mesmo diante desses indicadores, agora confirmados pelo teste sorológico, não visualizamos nenhum tipo de ação estadual ou municipal para mitigar esses impactoGustavo Forde
Professor e integrante da Unidade Negra Capixaba de Combate à Covid-19Antes de realizar a entrega do documento com as reivindicações, um grupo de 15 representantes dos movimentos negros deve fazer um ato político e simbólico em frente ao Palácio Anchieta, sede do Governo Estadual, em Vitória. No local, o grupo deixará cruzes em homenagem às mais de 600 pessoas que já perderam a vida para o novo coronavírus no Espírito Santo.
INFECTOLOGISTA: MEDIDAS SÃO NECESSÁRIAS, MAS LOCKDOWN NÃO É SOLUÇÃO
De acordo com o infectologista Paulo Peçanha, a maior incidência da Covid-19 entre pretos e pardos não é exclusividade do Espírito Santo e nem do Brasil. Com o avanço da doença para os bairros periféricos, a pandemia ilumina problemas e evidencia correlações socioeconômicas, já que estudos não revelaram qualquer propensão genética.
“A primeira questão diz respeito à habitação. Nessas regiões, as casas têm um alto número de moradores e fica mais difícil manter o distanciamento social. Por isso, a exposição acaba sendo muito maior. A segunda é a dificuldade para ter acesso ao atendimento médico, o que faz com que o diagnóstico seja mais tardio e a chance da doença evoluir mal ou matar seja elevada”, explicou.
"Outro dado que estudos e trabalhos têm mostrado é que pessoas negras com menores escolaridades morrem quatro vezes mais. Ou seja, há fatores de moradia, de assistência médica e de educação"Paulo Peçanha
Médico infectologistaDiante de tal realidade, o especialista defende que medidas mais específicas precisam ser tomadas. “Seria muito importante achar um jeito de dar o diagnóstico de forma mais precoce e isolar as pessoas doentes que não vão para o hospital, evitando que outras adquiram a doença e que o adoecimento nesses grupos seja perpetuado”, afirmou.
Consequentemente, na visão dele, o lockdown não seria tão eficaz. “Os números estão mostrando problemas estruturais que precisam ser enfrentados a médio prazo. A curto, as ações precisam atender às carências dessa parcela da sociedade. O lockdown tem efetividade, principalmente, nas áreas centrais”, concluiu o médico Paulo Peçanha.
O QUE DIZ O GOVERNO DO ESO Governo do Espírito Santo ainda não informou se receberá os representantes do movimento nesta quinta-feira (4) e nem quais medidas já estão sendo tomadas ou quais serão implementadas para conter o avanço da Covid-19 entre os negros. Assim que a equipe de reportagem receber o retorno, essa matéria será atualizada.
A Gazeta
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