Pesquisadores brasileiros descobrem primeiro anfíbio possivelmente peçonhento

As cobras-cegas (que não são cobras) possuem glândulas de veneno semelhantes às de serpentes, segundo cientistas do Instituto Butantan. 

Carlos Jared / Instituto Butantã/Reprodução
Para os leigos, os chamados gimnofionos podem parecer uma minhoca grande, ou mesmo algum tipo de cobra – tanto que são conhecidos popularmente como “cobras-cegas” ou “cecílias”. Na verdade, esses animais sem membros são vertebrados do grupo dos anfíbios, assim como sapos e rãs. Apesar de existirem há cerca de 250 milhões de anos, as cobras-cegas ainda permanecem pouco estudadas, porque vivem a maior parte do tempo enterradas e são difíceis de encontrar. Graças a uma equipe de pesquisadores brasileiros, porém, elas voltaram a receber atenção da comunidade científica. Isso porque são os primeiros anfíbios conhecidos que apresentam indícios de ser peçonhentos.

A descoberta foi feita por pesquisadores do Instituto Butantan com o apoio da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Os cientistas estavam analisando a cabeça da espécie Siphonops annulatus quando se depararam com grandes glândulas, que estavam ligadas por um tubo aos dentes do animal, tanto na mandíbula inferior como na superior. Estruturas como essa são encontradas em animais peçonhentos, que produzem veneno e o utilizam em presas ou para se defender. O estudo descrevendo a descoberta foi publicado na revista iScience.

Até hoje, não se conhece nenhum anfíbio que seja peçonhento – apenas espécies venenosas. Animais venenosos são aqueles que conseguem produzir substâncias tóxicas, mas não têm estruturas capazes de inoculá-las. Algumas espécies de rã, por exemplo, secretam veneno através de glândulas na pele, que causam danos a quem tocar ou morder o animal. As cobras-cegas também possuem veneno, e o secretam através de glândulas na região da cauda.

Mas a estrutura encontrada na cabeça desses bichos sugere a existência de um mecanismo de peçonha, ou seja, para injetar o veneno. Análises de microscópio mostraram que essas glândulas se originam de tecidos diferentes das glândulas de veneno da cauda, que surgem a partir do epitélio do bicho. As glândulas da cabeça derivam do tecido dentário – a mesma origem embrionária das glândulas de peçonha encontradas em serpentes, o que sugere fortemente um mecanismo bastante parecido.

As glândulas, na parte superior da imagem, estão ligadas aos dentes na parte inferior por tubos, assim como ocorre com animais peçonhentos. Carlos Jared/Reprodução

Cobras-cegas vivem embaixo da terra, cavando túneis e se alimentando de outros animais, como larvas de insetos, minhocas e até pequenos lagartos. Como não têm membros, elas usam a boca cheia de dentes para morder e incapacitar a presa, e os pesquisadores agora suspeitam que também utilize de peçonha para imobilizar e ajudar a matar suas refeições.

Apesar da descoberta, ainda não é possível afirmar com certeza se o animal é peçonhento ou não. Isso porque o que foi encontrado são estruturas capazes de inocular o veneno, mas ainda não se confirmou se a substância que existe nessas glândulas é de fato nociva. Uma análise preliminar feita pelos pesquisadores já encontrou altos níveis de fosfolipase A2, enzima comumente presente no veneno de cobras, aranhas e abelhas, por exemplo, o que é um grande indício de que a substância é sim tóxica, mas estudos subsequentes são necessários para se bater o martelo.

Se as cobras-cegas se confirmarem como animais peçonhentos, haverá implicações não só para a espécie, mas para o entendimento geral de como o mecanismo evoluiu nos animais. Esses anfíbios são muito mais antigos que as serpentes (250 milhões de anos atrás contra 120 milhões, mais ou menos), o que sugere que os gimnofionos possam ser os primeiros animais terrestres peçonhentos na escala evolutiva. Além disso, o achado pode ser mais um exemplo da chamada convergência evolutiva – quando animais diferentes desenvolvem mecanismos semelhantes por conta da pressão da seleção natural. Serpentes e cobras-cegas são parentes muito distantes, mas, mesmo assim, desenvolveram mecanismos similares por conta da evolução, que selecionou os membros que tinham peçonha, já que esses provavelmente são melhores caçadores.

Os cientistas suspeitam que o possível mecanismo de peçonha das cobras-cegas seja uma versão mais primitiva do das serpentes, já que apresenta várias pequenas glândulas com pouca quantidade de substância dentro, enquanto as serpentes possuem poucas glândulas, porém bem mais abastecidas.

Agora, além de analisar a substância produzida pelos bichos para checar se é de fato tóxica, a equipe pretende estudar também outras espécies de cobras-cega (existem mais de 200) para ver se o mecanismo é algo geral do grupo ou algo singular da Siphonops annulatus.


Revista Super Interessante 





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