Varíola dos macacos: Doença faz homens decidirem mudar rotina sexual

Psicólogo Naamã Rubet de Almeida conta mudar hábitos de relacionamento devido ao receio pela varíola dos macacos. Edilson Dantas / O Globo

— Parei de ir a festas, limitei as possibilidades de conhecer novos parceiros. Tenho consciência de pertencer ao grupo vulnerável à varíola dos macacos e, se é para evitar risco de infecção, por que não alterar meus hábitos? Sei que não sou o único. Várias pessoas do meu círculo de amizade adotaram a mesma postura.

O depoimento do psicólogo Naamã Rubet de Almeida, 30 anos, exemplifica uma nova realidade: homens que fazem sexo com outros homens mudando o comportamento sexual para reduzir o risco de infecção à varíola dos macacos.

No Brasil, já é nítida a mudança de comportamento, sobretudo nas grandes cidades, como São Paulo e Rio de Janeiro. Festas de sexo LGBTQIAP+ começam as ser suspensas, as famosas “dark rooms” (salas escuras, em tradução livre), voltadas para relações sexuais, também passaram a cerrar as portas. A Brutus, uma das maiores festas gays que ocorre mensalmente no Centro de São Paulo, divulgou um comunicado pelas redes sociais suspendendo o tradicional evento.

“Decidimos que neste momento, a melhor forma de reduzir os danos será suspender por hora a festa e continuar como uma fonte de informação para todos. Não aceitamos passivamente a condição como grupo de risco e continuaremos cobrando soluções concretas dos órgãos responsáveis”, divulgou a casa em comunicado.

Um bar voltado para o público LGBTQIAP+ na região de Arujá, no interior de São Paulo, notou que o público diminuiu nos últimos meses. Indagado sobre o motivo, o proprietário do local foi enfático: “varíola dos macacos”.

— Consigo perceber as mudanças dentro das casas noturnas em que toco, tanto no Rio de Janeiro quanto em São Paulo. As pessoas vão, ficam em seus grupos de amigos, dançam e curtem, mas não vejo mais as pessoas beijando vários de uma vez só. Em uma das últimas casas que toquei, na capital carioca, por exemplo, vi apenas dois casais héteros beijando na boca durante toda a noite — observou o DJ e influenciador Doug Mello.

O novo comportamento foi recentemente chancelado pela Organização Mundial de Saúde (OMS), o que deflagrou polêmica. Há um mês a instituição sugeriu que homens que fazem sexo com outros homens, a população que concentra a maior parte dos casos da doença, deveriam reduzir o número de parceiros sexuais e reconsiderar novas relações com parceiros múltiplos no intuito de “reduzir riscos de exposição”. A orientação chegou a ser criticada por ativistas do movimento LGBTQIAP+, que destacaram o risco de estigmatização deste público durante a epidemia de varíola dos macacos.

Um documento divulgado há poucos dias pelo Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), órgão de saúde dos Estados Unidos, mostra que homens que fazem sexo com outros homens e que mantiveram mais de um parceiro nas últimas três semanas correm um risco sete vezes maior de adquirir a doença do que aqueles que tem um relacionamento estável com apenas um parceiro.

A pesquisa, maior já feita até agora, dividiu os homens em três tipos de relação: a “principal” (zero ou um parceiro com duração estimada de 477 dias em média); a “casual” (uma ou duas parcerias com duração estimada de 166 dias em média) e a “única” (contatos que duram um dia e não se repetem). As taxas de transmissão da varíola entre as parcerias únicas foram de 46% a 54%. Entre as casuais, de 33% a 38%. Entre as principais, de 13% a 15%.

O estudo também comprova que uma redução de 40% nas “parcerias únicas” resultaria em uma redução de 20 a 30% no número de infectados pela varíola dos macacos. A queda nesse tipo de relação também ajuda a aumentar o tempo necessário para atingir um determinado nível de infecção na população, permitindo mais tempo para que os esforços de vacinação cheguem às pessoas suscetíveis.

Isso ocorre, segundo o CDC, em razão da facilidade de criar uma ampla rede sexual por esse grupo. “Ter um grande número de parceiros, como é facilitado por muitas parcerias únicas, resulta em ampla conectividade em uma rede sexual. Isso aumenta a transmissão de todas as infecções sexualmente transmissíveis, mas é particularmente importante para uma infecção como a varíola dos macacos, que tem um período contagioso curto e sintomático”, escreveu o órgão no estudo.

— Temos estudado com muita determinação o que ocorre no mundo. Na Europa, Estados Unidos e Canadá, os números subiram, e depois caíram. Mas isso é o ciclo biológico do vírus ou a mudança de comportamento? Infelizmente essas respostas ainda não temos. Entretanto, é importante que haja essa mudança de comportamento. No meu consultório, por exemplo, a maioria dos meus pacientes falam que tem recuado em seus relacionamentos, com receio da exposição ao novo vírus — disse o infectologista e professor da Universidade de São Paulo, David Uip.

A mudança, embora esteja acontecendo, não é seguida por todos os locais. Algumas casas noturnas e saunas em São Paulo chegaram a ser sondadas por autoridades sanitárias que recomendavam o fechamento desses estabelecimentos por um tempo para frear a disseminação dos casos de varíola. Entretanto, como os proprietários já estão tentando sobreviver pela crise causada durante os dois anos de pandemia com as portas cerradas, decidiram manter o funcionamento normalmente.

— Eu atendi um paciente 17 dias depois da parada do orgulho LGBTQIAP+ em São Paulo. Ele estava infectado pelo monkeypox e me confidenciou que teve mais de 30 relações sexuais durante a parada. Diminuir o número de parceiros é crucial e recomendado, ainda mais neste momento que não temos outras formas de prevenção. Nas últimas semanas estamos percebendo que os casos em São Paulo estão entrando em estabilidade e acredito que essas mudanças de atitudes, seja pessoal ou em festas, são um diferencial — afirmou Alexandre Naime Barbosa, Vice-Presidente da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI).

Estigma da Aids

Ao recomendar a redução de parceiros sexuais para homens que fazem sexo com outros homens, o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, reforçou que não se deve ter estigma e discriminação em torno da doença e que ambas podem ser tão perigosas quanto a propagação do vírus. “Embora 98% dos casos até agora estejam entre homens que fazem sexo com homens, qualquer pessoa exposta pode pegar a varíola dos macacos”, afirmou.

A Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) disse que só na América Latina a doença já atingiu 54 crianças, adolescentes e 145 mulheres, com a tendência de crescimento. Especialistas na área da saúde reforçam a necessidade de cuidado na forma de comunicar o grupo vulnerável do surto atual de varíola dos macacos para que não se cometa os mesmos erros no início da epidemia de Aids.

— A doença e a contaminação são diferentes, mas o preconceito e o estigmatização são os mesmos. Temos que ser extremamente cautelosos para não deixar que essa situação vire mais uma doença preconceituosa como foi a Aids no começo. Precisa haver uma comunicação transparente e objetiva de forma que todas as pessoas entendam os riscos e as medidas de proteção — Diz Uip, uma das maiores referências no tratamento de HIV no país.

O infectologista relembra que a doença entre os anos 80 e 90 ganhou termos que a banalizavam como: “aidético, peste gay e doença que só gays pegavam”. O médico diz que, assim como hoje com a varíola, colegas de profissão não queriam atender pacientes com Aids com medo de serem infectados.

— Há pessoas matando macacos, porque acreditam que eles transmitem a doença. Antigamente, por conta dessa falta de clareza nas informações, as pessoas acreditaram, de forma incorreta, que outros tipos de comportamentos e pessoas, que não fossem homens que fizessem sexo com outros homens, não tinham o risco de ser contaminados. Esse equívoco que eu vi claramente pagou um preço caríssimo. De novo está todo mundo exposto e não podemos cometer os mesmos erros — disse.

Fonte: O Globo


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