Prefeitura do ES cobra ingresso para show em festa da cidade e moradores reclamam


Festa de emancipação da cidade, realizada com verba pública, tem entrada à venda por R$ 40 (inteira). Nas redes sociais, moradores criticam a cobrança

Cidade de Venda Nova do Imigrante, na Região Serrana do Espírito Santo Crédito: Prefeitura de Venda Nova do Imigrante

A cobrança de ingressos para um show que será realizado pela Prefeitura de Venda Nova do Imigrante com recursos públicos é alvo de críticas de moradores. A administração da cidade, localizada na Região Serrana do Espírito Santo, alega que a venda dos bilhetes tem a finalidade de controlar o número de pessoas presentes no evento, além de recuperar para os cofres públicos parte dos recursos investidos.

➥ A legalidade da cobrança, no entanto, divide opiniões de órgãos públicos e de especialistas.

A 37ª Festa de Emancipação Política de Venda Nova do Imigrante está marcada para os dias 10 e 11 deste mês, no Centro de Eventos Padre Cleto Caliman, o Polentão — espaço público gerido pelo município. O evento reúne artistas locais e de outros Estados contratados por mais de R$ 700 mil. Apenas no sábado (10), dia em que a principal atração é o cantor e compositor brasileiro de forró e piseiro João Gomes, é que haverá cobrança de entrada, por R$ 40 (inteira) e R$ 20 (meia), fora as taxas das vendas on-line.

Segundo documentos na página de compras públicas, os shows de 2025 serão pagos com verbas livres (sem vinculação), de origens tributárias ou de transferências. O Portal da Transparência mostra que ainda serão pagos R$ 9 mil para a empresa que faz a comercialização dos ingressos.

A cobrança, porém, gerou indignação em moradores da cidade. “Um absurdo cobrar ingresso [...] sem contar que o show foi contratado com dinheiro público e é a festa do município. Parabéns aos envolvidos”, escreveu um internauta. “Gente, comprar ingressos para um show que a prefeitura vai fazer com dinheiro público?”, indagou outra moradora, na publicação em que a prefeitura divulga a comercialização dos ingressos para os shows.


Prefeitura do ES cobra ingresso para show em festa da cidade e moradores reclamam

Moradores reclamaram na publicação em que a Prefeitura de Venda Nova anuncia a comercialização dos ingressos Crédito: Reprodução / Instagram

No ano passado, não houve cobrança de ingresso para nenhum dos três dias de evento, apesar de a prefeitura ter investido valor bastante similar nas contratações: R$ 688 mil. Houve apenas a troca de produtos de higiene e de limpeza para garantia da entrada em um dos dias da programação.

Atual prefeito de Venda Nova, Dalton Perim (sem partido) afirma que a decisão de cobrar ingressos neste ano é uma forma de “recuperar para os cofres públicos o valor investido em demandas que são prioridade na cidade”.

Existe uma crítica muito grande quando as prefeituras gastam com shows, mas isso sempre aconteceu tanto no meu mandato quanto em outros. Na maioria dos shows abertos com artistas nacionais, quem mais se beneficia é o público que vem de fora. Então, fica estranho a prefeitura investir em shows que serão aproveitados por pessoas de outras cidades e não por moradores.

Dalton Perim (sem partido)Prefeito de Venda Nova do Imigrante

Mesmo com a venda dos ingressos, o prefeito afirma que a ação não deve cobrir as despesas da prefeitura com os shows contratados. "Já teve casos de shows pagos pelos cofres públicos em que mais 50% do público era de outros municípios. A gente colocou uma entrada para garantir o show e, pelo que temos visto, o valor da venda não dará para cobrir nem metade das despesas", argumenta.

O chefe do Executivo diz ainda que “a equipe da prefeitura cuidou para que [a venda de ingressos] fosse feita dentro da lei”. Entretanto, Dalton não apontou a legislação em que se baseou para vender as entradas.

“Procuramos o Ministério Público, por meio da promotoria da cidade, e apresentamos a situação. Afirmaram não haver ilegalidade na venda dos ingressos e exigiram somente que houvesse prestação de contas dos recursos e transparência na aplicação”, explica.

A reportagem procurou a Promotoria de Justiça de Venda Nova do Imigrante, ligada ao Ministério Público, para entender as regras para venda de ingressos em eventos realizados com verba pública. A demanda, porém, não foi respondida.

A prefeitura não apontou de forma clara qual a destinação dos recursos arrecadados com a cobrança neste ano e não comentou por que os shows contratados em 2024, em outra gestão, não tiveram cobrança de ingressos.


Transparência

A transparência na aplicação de dinheiro público, segundo especialistas, é o ideal quando uma administração municipal decide cobrar ingressos para eventos realizados com recursos públicos.

Entre órgãos e especialistas ouvidos por A Gazeta, o mais taxativo é o Ministério Público de Contas do Espírito Santo (MPC-ES). Segundo o órgão, a cobrança de ingresso para show custeado com verba pública só é permitida se houver uma lei local que autorize a ação. Não é o caso de Venda Nova.

“A vedação é constitucional, quando não houver lei local expressa. Por exemplo, o artigo 215 da Constituição Federal (CF) promove o direito fundamental de acesso à cultura; e o princípio da legalidade, artigo 37 da CF, proíbe a cobrança se não houver lei que autorize o Poder Público a fazê-lo”, informa nota do MPC-ES.

O Ministério Público do Espírito Santo (MPES) também cita a Constituição, mas diverge do MPC-ES. Para o órgão ministerial, a Carta Magna garante autonomia financeira e orçamentária a cada município, e a eventual cobrança de ingresso em eventos custeados com verbas públicas deve observar legislações específicas, “devendo ainda serem verificados aspectos como a finalidade do evento, a transparência e formas de financiamento”, aponta o MPES, em nota.

➥ A situação, segundo especialistas, pode expor uma falta de transparência com uso dos recursos públicos.

Para o advogado Eduardo Sarlo, não há amparo legal, via de regra, para que o Executivo municipal cobre ingressos para serviço contratado com dinheiro público.

“A gratuidade deve ser assegurada à população, pois já houve financiamento com recursos públicos. A cobrança de ingressos nesse contexto pode configurar desvio de finalidade e ofensa aos princípios da administração pública, como o da moralidade e da economicidade”, diz Sarlo.

O cantor João Gomes é a principal atração da Festa de Emancipação de Venda Nova Crédito: Instagram/@joaogomescantor

É o mesmo entendimento do advogado Sandro Câmara. Segundo ele, quando uma prefeitura investe recursos em eventos culturais, espera-se que estes sejam acessíveis à população. O especialista em Direito Público, no entanto, ressalva que não existe uma proibição absoluta de cobranças de ingressos, que valha para todos os casos.

“O que determina a legalidade são alguns fatores, como a finalidade da cobrança, a previsão no orçamento público para o show do cantor, a devida transparência e a destinação dos recursos, além de alguma contrapartida social (como ingressos gratuitos ou com valores reduzidos para parte da população)”, pondera.

Já Eduardo Sarlo ainda acrescenta que a cobrança dos ingressos pode ser considerada uma forma indireta ou irregular de arrecadação por parte do município.

Se os valores arrecadados com ingressos não forem devidamente contabilizados como receita pública e vinculados ao orçamento, ou se forem administrados por terceiros sem controle público, isso pode configurar arrecadação irregular e violação à Lei de Responsabilidade Fiscal.

Eduardo Sarlo Advogado

Se comprovada irregularidade, as consequências, segundo Sarlo, podem incluir responsabilização por improbidade administrativa, instauração de tomada de contas especial, anulação do contrato, devolução dos valores aos cofres públicos e responsabilização pessoal do gestor municipal.

Procurado pela reportagem para esclarecer as regras, o Tribunal de Contas do Estado do Espírito Santo (TCE-ES) informa apenas que "não recebeu qualquer representação ou denúncia sobre o caso, não sendo possível manifestação no momento por falta de elementos."

Além de órgãos de controle e especialistas, A Gazeta também buscou o Procon de Venda Nova para esclarecer a regularidade da venda dos ingressos.

Segundo serviço de proteção ao consumidor, caso algum morador se sinta prejudicado, o órgão pode atuar na “apuração de possíveis infrações, como ausência de informação clara, cobrança sem contrapartida ou publicidade enganosa. Nessas hipóteses, eventuais reclamações poderão ser formalizadas para análise do caso concreto”, sinaliza o Procon.

Já o Ministério Público do Estado acrescenta que “caso seja identificada alguma inconformidade, tomará as providências necessárias”.


Situação similar no Sul do Brasil

Uma situação parecida chegou a resultar em condenação de um ex-prefeito e de uma empresa de Lages, em Santa Catarina, em 2022. Naquele ano, segundo o Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC), o ex-gestor municipal, junto de uma empresa promotora de eventos, foi condenado a ressarcir os cofres do município em mais de R$ 27 mil, acrescidos de juros e correção monetária.

O Poder Judiciário catarinense declarou a nulidade do ato de cobrança de acesso ao parque de exposições de Lages durante uma festa tradicional do município, em 2015.

“Não havia previsão no edital de licitação, nem no contrato administrativo, de cobrança para acessar o local do evento. Porém, quando foi realizado, em 2015, com a concordância do ex-prefeito, os cidadãos tiveram que pagar para participar dos bailes no interior do parque. A prefeitura pagou à empresa R$ 60 mil para realização dos shows, bailes, organização da estrutura e limpeza. A ela cabia o direito, com exclusividade, à exploração de alguns serviços como venda de espaços para expositores, bebidas, alimentos e brinquedos, por exemplo, mas não à venda de ingressos”, diz trecho da decisão.


Fonte: A Gazeta



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