Já havia relatos de que populações inteiras de bugios, saguis e macacos-pregos -espécies que não estão ameaçadas de extinção– estavam sendo dizimadas pelo vírus, mas nada ainda se sabia sobre a incidência da doença no Leontopithecus rosalia, o mico-leão-dourado, este, sim, ameaçado
No
final do mês passado, a Associação Mico-Leão-Dourado (AMLD) começou a pôr em
prática uma estratégia inédita no mundo, resultado de uma ideia surgida em
2017. Fundada em 1992, a ONG fluminense desenvolve estratégias para a
preservação da espécie.
Naquele
ano, o virologista Marcos da Silva Freire e o primatólogo Alcides Pissinatti,
ambos veterinários, se encontraram em um seminário sobre febre amarela em primatas
não humanos na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio de Janeiro.
Freire,
doutor em biologia parasitária, hoje assessor científico na Bio-Manguinhos,
unidade da Fiocruz, trabalhou por 36 anos na instituição no desenvolvimento e
produção de vacinas humanas. É especialista em febre amarela.
Pissinatti,
formado em 1970 e doutor em biologia animal, é o chefe do Centro de
Primatologia do Rio de Janeiro (CPRJ), criado em 1979 para o estudo e a
conservação dos primatas brasileiros.
Na
conversa, os dois viram que era preciso fazer alguma coisa em relação ao
mico-leão-dourado, cuja população certamente seria atingida pelo surto de febre
amarela que atingia parte do país naquele ano. O vírus, transmitido por um
mosquito, estava afetando principalmente a região Sudeste.
Já
havia relatos de que populações inteiras de bugios, saguis e macacos-pregos
-espécies que não estão ameaçadas de extinção– estavam sendo dizimadas pelo
vírus, mas nada ainda se sabia sobre a incidência da doença no Leontopithecus
rosalia, o mico-leão-dourado, este, sim, ameaçado.
Os
dois pesquisadores então se perguntaram: é possível vaciná-los?
"Não
havia literatura sobre as muitas questões a serem respondidas, e nossa
principal preocupação era em relação à segurança dos macacos", conta Freire.
A
equipe da AMLD também desconfiava que a espécie já poderia estar sendo atingida
pela febre amarela; mas encontrar micos mortos para verificar a hipótese é
muito difícil. Os animais dormem nos ocos das árvores e, como são muito
pequenos –pesam em média 600 gramas–, a decomposição dos corpos é muito rápida.
A
confirmação da suspeita veio em 2018, quando um deles foi achado morto na mata
e levado pela AMLD para exames no Rio de Janeiro; verificou-se que havia sido
infectado pelo vírus.
O dano
causado pela doença na espécie foi grande desde então. Na década de 1970,
estimou-se haver apenas 200 animais em vida livre. Os esforços de conservação e
repovoamento iniciados àquela época fizeram esse total chegar a 3.700 em 2014.
Porém, com a chegada da febre amarela, o número caiu para 2.500 em 2019,
segundo recenseamento da AMLD -uma redução de mais de 30%.
Na
Reserva Biológica de Poço das Antas (RJ), unidade de conservação do ICMBio
localizada entre Silva Jardim e Casimiro de Abreu que cuida da preservação de
várias espécies, a população do mico-leão-dourado passou de 300 para 37
indivíduos.
"O
mico-leão-dourado vive em uma região bem específica da mata atlântica do estado
do Rio, em florestas sempre abaixo de 500 metros de altitude, ele só existe
ali. Num espaço tão limitado assim, o vírus pode ser uma verdadeira tragédia
para a espécie", explica Luís Paulo Ferraz, geógrafo, secretário-executivo
da AMLD.
Começaram
então, em 2018, trabalhos de pesquisa na Fiocruz e no CPRJ para pôr em curso a
ideia da vacina surgida em 2017.
Os
pesquisadores avaliaram durante esse tempo a resposta imunológica nos animais
–ou seja, a produção de anticorpos- e a segurança da vacina. Dois anos depois,
chegou-se a uma fórmula segura, que produz imunidade e não causa mal aos
animais. É a primeira vez que se faz isso com primatas que não o homem.
Até
agora, 58 macacos já foram vacinados, conta o biólogo Carlos Ruiz Miranda,
professor da Universidade Estadual do Norte Fluminense em Campos dos Goytacazes
(RJ) e integrante do projeto.
A
primeira fase do programa experimental prevê a vacinação de 500 animais em um
período de até três anos. Dependendo dos resultados, o número pode chegar a
1.000.
Todo o
trabalho tem acompanhamento e autorizações do Ministério da Saúde e do Centro
de Pesquisas e Conservação de Primatas Brasileiros (CPB/ICMBio), que coordena o
Plano de Ação Nacional para a Conservação de Primatas da Mata Atlântica e da
Preguiça-de-coleira.
VACINA USA VÍRUS ATENUADO
Apesar de terem usado
como ponto de partida uma tecnologia que já existia -a vacina para humanos-, os
cientistas não sabiam se ela seria segura nem se seria capaz de provocar
imunidade nos animais. Os ensaios foram feitos com macacos em cativeiro, das
espécies mico-leão-dourado, mico-leão-preto e mico-leão-da-cara-preta.
Testaram-se
basicamente três possibilidades: uma delas usando apenas uma partícula do vírus
(uma proteína); outra com o vírus inativado; a terceira com o vírus vivo
atenuado. Foi esta última que apresentou a melhor resposta imunológica nos
animais.
"Nos
micos-leões-dourados, ela é usada numa diluição em torno de 1/150 em relação à
que é utilizada em humanos", explica Freire, o virologista da Fiocruz.
A
pandemia da Covid-19 atrasou um pouco o início da vacinação. "Não há
estudos sobre coronavírus em macacos, e não poderíamos correr nenhum
risco", diz o secretário-executivo da AMLD. Foi então preciso criar
procedimentos para evitar qualquer risco de contaminação.
Para
vaciná-los, a equipe do AMLD captura os animais na mata e os leva ao
laboratório, onde são anestesiados antes de receberem a vacina. Eles são
devolvidos à natureza apenas no dia seguinte. Os grupos são localizados por
meio de sinais de rádio emitidos pelos colares acoplados aos animais ou por
emissão de vocalização por playback. É um trabalho que requer muito tempo e
paciência, e que as equipes de campo da AMLD, após intenso treinamento, vêm
realizando há mais de 30 anos.
E como
se sabe se a vacina teve efeito? "Entre 30 e 45 dias após a vacinação, nós
pegaremos novamente os animais e faremos novo exame sorológico para avaliar se
houve produção de anticorpos, ou seja, se a vacina provocou a resposta
imunológica desejada", explica Miranda. Isso começará a acontecer a partir
da próxima semana.
Caso a
experiência obtenha sucesso, os primeiros animais vacinados serão levados para
as áreas que foram mais atingidas pela febre amarela e onde circulam os
mosquitos transmissores contaminados pelo vírus. Estará assim resolvido um dos
principais problemas que afetam hoje essas populações.
E a
maior ameaça à espécie voltará a ser a destruição das florestas na região.
Com Informações Notícias ao Minuto